Cultura brasileira, herdeira de 22

21 de janeiro de 2022

Vamos definir a Semana de Arte Moderna de 1922 lançando mão de um esforço supremo de simplificação: o que o modernismo fez foi quebrar as formas tradicionais. Iconoclasta na essência, o movimento buscou subverter as regras dos fazeres artísticos. Os poemas perderam o “gesso”. A música ganhou novos traquejos. As artes plásticas se tornaram o exercício do possível. A dramaturgia se proporcionou absurdos. E assim por diante. ESTE CONTEÚDO ESTÁ PUBLICADO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO #467 IMPRESSA DA REVISTA PB. A VERSÃO DIGITAL ENCONTRA-SE DISPONÍVEL NA BANCAH.

E

Em um olhar retrospectivo, portanto, não fosse o modernismo, não teria havido poesia concreta, nem música tropicalista, tampouco Teatro Oficina ou Cinema Novo. A cultura teria se estagnado numa “mesmice” sem reinvenção, como se as obras de hoje fossem arremedos do que já fora feito, reformulações dentro do esquadro e da lógica, arte dentro da caixa.

“O modernismo ecoa até hoje nas artes. Não necessariamente de maneira direta, mas ecoa”, afirma o pesquisador de culturas populares Alberto Tsuyoshi Ikeda, professor na Universidade de São Paulo (USP) e consultor da cátedra Kaapora: da Diversidade Cultural e Étnica na Sociedade Brasileira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ikeda classifica como emblemático o que ocorreu na música brasileira na década de 1970. “Com o tropicalismo, Caetano Veloso, Gilberto Gil e os demais trouxeram diretamente o modernismo, porque havia, de forma sistemática, uma preocupação em recuperar a questão da antropofagia”, analisa. “Hoje, isso está na revalorização das expressões populares, mas é algo mais difuso.”

Para o antropólogo e sociólogo Marko Monteiro, professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), de 1922 para cá, as artes jamais pararam de se apropriar, de formas “extremamente potentes”, do modernismo. Ele diz isso citando como exemplos o tropicalismo e o Cinema Novo, “entre outras formas de arte mais críticas e subversivas”. “Acho que os manifestos Antropófago e do Pau-Brasil ainda são menos debatidos dentro do modernismo brasileiro, mas foram eles que impactaram de forma mais interessante a cultura nacional”, diz Monteiro.

“Se nas décadas de 1960 e 1970 tivemos estas apropriações, creio que o século 21 se mostre uma reação conservadora da cultura frente a esta percepção do Brasil na busca por ideias de país. Apesar disso, vemos neste século uma multiplicação de formas de expressão que explodem parâmetros da arte tradicional: música, grafite, dança, cinema e teatro, que ampliaram muito o que entendemos como nacional”, destaca ele. “O Movimento de 22 de fato serviu de base para toda uma produção cultural posterior”, acrescenta a jornalista, escritora e historiadora Marcia Camargos, autora do livro Semana de 22: entre vaias e aplausos.

“Vemos neste século uma multiplicação de formas de expressão que explodem parâmetros da arte tradicional: música, grafite, dança, cinema e teatro, que ampliaram muito o que entendemos como nacional.” Marko Monteiro, antropólogo e sociólogo, professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Escrevendo torto em linhas tortas

Escritores contemporâneos não negam que influências persistem. “Toda a literatura contemporânea em voga, o que temos de relevante na literatura brasileira contemporânea, vem desta herança modernista”, afirma o escritor e professor universitário Miguel Sanches Neto, reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). “Do valor da informalidade à valorização dos grupos minoritários, a Semana de 22 nos colocou em contato com os grupos que, até então, não apareciam como protagonistas.”

Para o escritor Ricardo Lísias, ficou da Semana de 22 “a disposição para a tensão”. “Os modernistas tinham este interesse muito marcado”, ressalta. “Há uma disposição muito grande para uma arte de tensão com a sociedade, com os outros mecanismos, com os ambientes artísticos. Mesmo que esta situação tenha se perdido ao longo do tempo, manteve-se um certo espírito de liberdade, de alegria desafiadora. A alegria se manteve. Também ficou em estatutos da arte uma importância do elemento local. Na música, tivemos o tropicalismo, o mangue beat”, exemplifica Lísias.

Segundo Marcia, este processo só foi possível porque, primeiro, houve um processo de “valorização simbólica ao extremo” do modernismo, ainda num primeiro momento, seguido de uma mitificação, quando críticos, historiadores e outros envolvidos no meio artístico passaram a endossar aquelas ideias com o verniz da consagração. Um dos responsáveis pela cristalização desta leitura foi o crítico Antonio Candido (1918-2017), prestigiado professor da USP e uma das primeiras vozes eloquentes a alçar os modernistas ao cânone da cultura nacional. Esta narrativa toma forma durante o período da circulação da revista Clima, entre 1941 e 1944, da qual Candido era um dos colaboradores, junto a outros intelectuais de peso.

“Foi assim que o modernismo passou a ser compreendido como o marco zero, um divisor de águas da produção cultural artística brasileira, como se nada antes dele houvesse”, pontua Camargos. A esta altura, já estava sedimentada a proposta do movimento – na literatura, com o uso natural da oralidade, entre outros aspectos. “O modernismo continua atual porque reverbera ainda hoje este grito de revolta, este ‘basta’. E foi se desdobrando em vários outros movimentos”, acrescenta a historiadora.

“O modernismo continua atual porque reverbera ainda hoje este grito de revolta, este ‘basta’. E foi se desdobrando em vários outros movimentos” Marcia Camargos, jornalista, escritora e historiadora, autora do livro Semana de 22: Entre Vaias e Aplausos

Liquidificador de culturas

Para o crítico de arte Marcos Rizolli, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o modernismo conseguiu se manter vivo no caldo cultural brasileiro em virtude da junção do “fator histórico” com o “sentimento de que deveria haver uma arte genuinamente brasileira, que tratasse de temas significativos para a cultura nacional”. Desta maneira, ao ressignificar as raízes pré-cabralinas, o tempo colonial, as influências africanas, os modos de ser da população e a paisagem tropical, a arte passou a compreender “todo o processo de modernização da sociedade brasileira, com a urbanização e a industrialização”. Contudo, Rizolli lembra que, no meio deste percurso de um século, houve um outro evento fundamental: a realização da 1ª Bienal de Arte de São Paulo, em 1951, a partir da qual foi trazido o conceito de “glocal”, ou seja, o global juntamente com o local.

Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o sociólogo Rogerio Baptistini vê o legado do modernismo no diálogo que “a cultura brasileira estabelece com os temas universais e contemporâneos”. “Desde 1922, a posição do Brasil diante do mundo deixou de ser a de mero receptor servil de modelos e modas e passou a ser a de produtor de sínteses”, ressalta. Um liquidificador a misturar ingredientes de um caldo cultural – a sopa genuinamente nacional, por fim.

CONTINUE LENDO ESTA REPORTAGEM NA BANCAH.

Edison Veiga Paula Seco
Edison Veiga Paula Seco