Poética periférica

07 de julho de 2020

No princípio, era o Sarau da Cooperifa (Cooperativa dos Poetas da Periferia), em São Paulo. Hoje, 18 anos depois, a poética periférica se espalhou pelo País. À frente das ações, estão artistas que ganham voz e identidade em centenas de eventos e produtos culturais. Nascidos nas quebradas, rimam contra o que vivem: exclusão social, homofobia, genocídio, racismo e feminicídio, entre outras mazelas. Com isso, atraem cada vez mais espectadores para dois eventos: o sarau, reunião em que poetas e escritores declamam ou leem suas obras, e o slam, competição de poesia falada.

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Entrevistas e fotos realizadas antes das medidas de isolamento social

O Sarau da Cooperifa, berço desse movimento, continua lotando toda terça-feira o Bar do Zé Batidão, no Jardim Guarujá, extremo sul da capital paulistana. “No primeiro sarau deste ano, havia mais de 300 pessoas, mas a média fica entre 120 e 150 inscritos”, conta o poeta Sergio Vaz, um de seus criadores.

Uma das maiores conquistas alcançadas pelo movimento foi incitar seus protagonistas a viverem de sua arte. É o caso de Kimani, nome artístico de Cinthya da Silva Santos, de 27 anos, moradora do Grajaú, no limite sul da capital paulista. Além de tirar seu sustento do que cria como poeta e rapper, trabalha produzindo artistas que também vieram de bairros distantes do centro. Com pelo menos três slams por semana e dois saraus por mês na agenda, ela venceu o Slam SP, Slam BR e participou do evento global, realizado online, em maio.   

“O slam foi o palco para as minhas descobertas e meu fortalecimento. Eu me vejo nos outros e isso cura a gente. A gente fala de coisas que mexem com os outros e ouve coisas que mexem com a gente”, diz Kimani.

Assíduo na Cooperifa, o poeta Márcio Ricardo, de 29 anos, aprendeu a rimar aos seis anos. Morador do Grajaú, é rapper, tem quatro CDs gravados e já fez mais de mil palestras em escolas públicas e privadas. “Vivo da arte, da poesia e da música. Não é fácil, mas a gente tem de acreditar no nosso sonho”, afirma o autor do livro Felicidade brasileira, publicado em 2013.  

Mas o palco não é só para quem escreve poesia. Dona Edite, de 77 anos, começou a frequentar a Cooperifa, em 2006, e sentiu como se estive recuperando a visão. Vítima de um glaucoma, é sempre recebida no palco do sarau com aplausos e gritos da plateia: “Uhuu, dona Edite!”. Os fãs silenciam logo para ouvir sua voz forte e bem entoada declamando. Além do sarau, ela participa de outros eventos culturais e dá palestras em universidades, casas de cultura, unidades do Sesc, teatros e escolas públicas. “Muita coisa mudou a partir da Cooperifa. Nunca pensei em chegar aonde cheguei.”

Slam das Minas

“No slam, quem vence é a poesia!”, é uma das frases repetidas pelas participantes nas disputas exclusivas de mulheres (cis e trans) da periferia, negras na maioria. Nascidas em 2016, com o precursor Slam das Minas SP – criado pelas poetas, Carolina Peixoto, Mel Duarte, Luz Ribeiro e Pam Araújo –, as arenas femininas se firmaram pelo País como uma resposta aos comportamentos machistas nas competições. O movimento se organizou em 19 Estados e conta com nomes como a cantora de hip hop Nega Fya, em Salvador, e Shaira Mana Josy, do Slam das Minas de Belém do Pará, poeta desde os 15 anos e autora do livro Po Eu Sia.

“Foi por intermédio da poesia que falaram, ouviram e aprenderam a lição maior: estudar.” Sérgio Vaz, criador da Cooperifa (junto com o poeta Marco Pezão, falecido em 2019)

Sérgio Vaz fala à PB

Qual a importância do Sarau da Cooperifa?

Lá, muita gente da periferia descobriu que tem voz e ela é ouvida. Todo mundo ensina e aprende. Tiramos a poesia do pedestal e abraçamos os pés da comunidade. Descobrimos que somos artistas e cidadãos. A gente resgata as tradições antigas. Foi a palavra que nos levou à literatura, não o livro. Toda terça, trabalhadores e trabalhadoras se reúnem para falar de poesia. É uma revolução. A autoestima está no sentido de “eu tenho o que falar porque tem gente para ouvir”. Por muito tempo a periferia ficou ouvindo a voz da classe média. Agora não. A partir do hip hop a gente começa a falar o nosso dialeto, o jeito de fazer teatro, dança e poesia. Isso é autoestima. A gente se reconhece como povo. Quando eu era mais jovem, não tinha referência literária do bairro. O hip hop inaugura isso. Ídolos que moram no Capão Redondo, Itaquera, Jardim Guarujá, não são ídolos, são parceiros.

Como surgiu?

A Cooperifa surgiu primeiro. Depois veio o Sarau em um galpão de uma antiga fábrica, em Taboão da Serra. Realizávamos eventos parecidos com a Mostra Cultural que fazemos hoje. Fundei o Sarau em outubro de 2001, com o Pezão, para falar e ouvir poesia. Ficamos um ano e meio em Taboão e, em 2002, fomos para o Bar do Zé Batidão, no Jardim Guarujá. Para nossa surpresa, os poetas começaram a chegar de todos os lugares. Todo mundo tinha poesia, mas não tinha espaço.

O que mudou nesse período?

Muitos jovens que passaram por lá hoje são formados, com mestrado ou doutorado. Nem falo de quem escreveu livro ali. Foi por intermédio da poesia que falaram, ouviram e aprenderam a lição maior: estudar. Hoje, quando vou às escolas da quebrada, os alunos nos conhecem. Os professores levam os alunos ao Sarau da Cooperifa, não em parques de diversão. Eles se mobilizam por um evento da própria periferia.

Quais as outras frentes de atuação?

Tenho o projeto contra a violência. Há oito anos, visito uma escola por semana. Provoco os alunos a lerem, escreverem e escutarem poesia. Eu me sinto um missionário ou psicopata da poesia. A gente escreve para a periferia, e se eles não forem ler, não faz o menor sentido. Desde 2007, tem também a Mostra Cultural, que está na décima terceira edição e dura oito dias. É feita em parceria com as escolas e com grupos de teatro, dança, palestrantes e poetas.  

Quais as novidades para 2020?

Inauguramos um clube de leitura mensal, aos sábados, das 10h às 16h, que termina com show e feijoada literária. Passamos o dia falando de livros e autores porque estão faltando ideias. Tudo na Laje do Batidão. E tem o Cine na Laje, que é quinzenal e gratuito, com conversas sobre os filmes na sequência.

Conteúdo publicado na edição 458 da revista PB. Clique aqui.
Acesse ao ensaio Palco da Periferia. Clique aqui.

Roseli Loturco Tiago Araujo
Roseli Loturco Tiago Araujo
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