“Preserve-nos, Senhor, da autobárbarie.”
Vem, desde a Antiguidade Clássica, a relação entre a saúde do corpo humano e a pólis, compreendida como um corpo político. O termo “constituição”, por exemplo, tem origem nesta gramática introduzida pela teoria dos humores na filosofia grega. O seu pressuposto é que o corpo político seja análogo ao corpo humano, e, portanto, muito do que vale para este também se aplica àquele.
Segundo esta tradição, o corpo político saudável teria uma boa constituição com base na mistura harmônica (a crasis) dos vários grupos e facções políticas que se confrontam, com a finalidade de disputar vantagens materiais e simbólicas dentro da pólis.
O ideal republicano da Antiguidade se funda exatamente nesta crença da necessidade de uma boa dosagem. É fundamental, para a construção deste ideal normativo, que o legislador tenha a sensibilidade não somente de incorporar, institucional e procedimentalmente, a manutenção das disputas simbólica e material entre as facções, bem como deve garantir que tal disputa não possa ser excedida para fora do campo político. A não observância destes princípios pelo governante geraria, necessariamente, a degenerescência do corpo, a sua corrupção.
A corrupção significava exatamente a perda de substância ou de sentido de uma forma institucional ou legal, que perdia ou degradava a função pela qual foi criada. Essa degeneração (ou doença) corroía o equilíbrio do corpo até afetar por inteiro a estrutura da República.
Observavam os gregos que isso geralmente acontecia porque os governantes não estavam atentos aos conflitos sociais, transformando as próprias facções em detentoras absolutas de todos os recursos materiais e simbólicos da pólis; ou porque os governantes não estavam atentos à importância das formas institucionais na garantia de que os conflitos não desaguassem em vendetas, bem como na transformação do interesse particular de uma facção em universalidade dentro da própria estrutura da República.
Os antigos relatavam que quando essa degeneração ocorresse, tragédias, pestes e guerras seriam inevitáveis, além da doença e do mal estarem expressos nos corpos individuais de cada cidadão.
Tucídides, por exemplo, acusava a corrupção presente em Atenas como razão principal tanto do fracasso na Guerra do Peloponeso, como da ocorrência da peste que assolou a cidade grega entre 430 a.C. e 427 a.C.
Partindo desta tradição, podemos nos perguntar como os gregos antigos observariam o governo brasileiro em plena pandemia de covid-19. Fico imaginando o que Tucídides diria, bebendo o seu café com o jornal do dia na mão, caso lesse a seguinte notícia: “O atual presidente da Câmara dos Deputados indicou, para a presidência da Comissão de Constituição e Justiça, a deputada que defendeu na tribuna da Câmara a intervenção militar e o fechamento do Congresso Nacional”.
O que ele teria comentado se soubesse que juízes federais e procuradores da República se uniram a agentes estrangeiros com o objetivo de corromper a própria República que lhes deu a autoridade para protegê-la?
O que teria dito se soubesse que o chefe do Executivo nacional não comprou o oxigênio necessário para bebês prematuros e doentes do Covid-19, deixando eles morrerem asfixiados, e que esse ato matou, no mínimo, 51 brasileiros em uma única tarde?
O que teria comentado se soubesse que depois de mais de 220 mil mortos, o presidente em exercício, não tenha se preocupado em adquirir insumos e nem as vacinas necessárias para gerar a imunização da população que o escolheu como guardião das políticas que devem, pelo menos, lhes garantir a existência física?
Acredito que Tucídides olharia para mim e diria algo como:
— Mas vocês já saíram da zona da pólis faz um tempinho, não?! Não se trata mais de uma República! E o limite da degeneração já está mais do que ultrapassado! Vocês já se tornaram os bárbaros de si mesmos. Já matam crianças e mulheres. Já queimam e salgam suas terras.
— Bárbara! Na espera de uma obra política de recivilização, apenas lhes resta o refúgio na oração. Lembre-se do poeta russo Andrei Voznessenski, que dizia: “Preserve-nos, Senhor, de novas prisões/Não são os abomináveis bárbaros que quebraram nossa Roma/Preserve-nos, Senhor, da autobarbárie/Da autobarbárie, salvai-nos, Senhor/Como lebres corremos diante dos faróis/mas não são estrangeiros que nos perseguem!/Estamos sucumbindo à autobárbarie, salvai-nos, Senhor/Sobre as ruínas da autobarbárie que não se inscrevam nossos nomes”.
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