Entrevista com o professor Adam Przeworski, um dos mais respeitados cientistas políticos do mundo, na atualidade, foi publicada em 2018 na revista acadêmica online IHU, ligada à Unisinos. Na conversa, dentre tantas questões relevantes para a compreensão da política, o entrevistado pontua que numa democracia chamada “minimalista”, estamos a falar de “um arranjo político no qual as pessoas selecionam governos por meio de eleições e têm uma possibilidade razoável de removê-los. É preciso notar, no entanto, que esta definição assume as condições prévias para a disputa de eleições – os direitos e as liberdades, simplesmente porque, sem elas, o governo não poderia ser derrotado”.
Isso significa dizer, e ele completa o pensamento afirmando que a definição não é tão mínima quanto parece, que: sem as chances de derrota e as liberdades para o contraponto de quem está no poder, não há qualquer possibilidade de se consolidar uma democracia. E, portanto, a todo instante, existirão conflitos nas sociedades, gerando insatisfações, decepções e, obviamente, em contraponto, satisfação e bem-estar.
Assim, como escrevi faz alguns poucos anos neste espaço do site da Problemas Brasileiros, citando o mesmo Przeworski: “A democracia exige como condição essencial que os perdedores aceitem derrotas eleitorais. Quando adversários entram numa disputa, legitimam suas regras e formatos. Quando saem dela, precisam fazer o mesmo: o derrotado deve reconhecer que perdeu. Se tal fenômeno fosse menos importante, a mídia não cobriria com ênfase a mensagem dos derrotados, e os vitoriosos não esperariam seus adversários para falarem do sucesso. Quando adversários entram numa disputa, legitimam suas regras e formatos. Quando saem dela, precisam fazer o mesmo: o derrotado deve reconhecer que perdeu”.
O referido texto, de minha autoria, destaca que Donald Trump indicava que não aceitaria a derrota antes mesmo de perder – o que se confirmaria meses depois. Lembrei ainda de Capriles, na Venezuela, a despeito das radicalidades daquele país, em seu gesto de não reconhecimento da derrota, em 2013. Citei o caso de Aécio Neves, que, em 2014, cumprimentou Dilma Rousseff, mas pediu recontagem “para encher o saco do PT”, o que provavelmente se configura numa das sementes do radicalismo político que vivemos desde 2013 no País. E terminei com as falas de Bolsonaro sobre as eleições daquele mesmo ano, quando afirmou que o tucano mineiro venceu Dilma, bem como observou que sua vitória em 2018 se deu em primeiro turno. Sua incansável saga de ataque às urnas eletrônicas desestabilizaram o sistema e têm potencial para levar gente às ruas para gritar contra sua derrota em 2022. O discurso é tão ruim quanto a ausência de um contato, de uma declaração que seja capaz de legitimar a vitória de Lula no domingo, dia 30, pela menor diferença de votos da história nacional.
Assim, Lula não esperou o que não parecia capaz de ocorrer – e realmente não se concretizou. O silêncio de Bolsonaro é antidemocrático, a despeito da profunda dor de uma derrota para quem participou do jogo. Nunca um presidente deixou de se reeleger, mas também nunca havia ocorrido virada em segundo turno, o que significa que um presidente nunca foi à segunda volta em segundo lugar. Tradições e ocorrências deste tipo existem para que o destino as desafie, caso contrário, não teríamos a democracia descrita por Przeworski. Bolsonaro foi um candidato gigantesco. Teve, no primeiro turno, mais votos que o esperado; e no segundo turno, tirou cerca de dois terços da vantagem de Lula. Para cada voto que o PT conseguiu no segundo turno, o presidente conseguiu mais de dois. Isso é impressionante, mas, obviamente, tem um preço imenso: o uso da máquina e a construção de mentiras para gerar medo são dois dos ingredientes mais destacados, tática utilizada pelo PT em 2014, com sucesso, por Dilma e sua equipe de marketing – numa intensidade um pouco menor. Aquele pleito tinha os dois candidatos do segundo turno com rejeições, na véspera do segundo turno, de acordo com o Datafolha, em 38% (Dilma) e 42% (Aécio). Para termos uma ideia do que tivemos em 2022, a pesquisa do Instituto Paraná, divulgada em 24 de outubro, dava Lula e Bolsonaro com 46% dos votos e 49% de rejeição, cada
um.
O que vimos, então, é um país absolutamente dividido. Lula atingiu seu teto antes de Bolsonaro, e as dimensões aqui são semelhantes. Dois milhões de votos, em um universo de 215 milhões de pessoas – ou 156 milhões de eleitores ou, ainda, 124 milhões de comparecimentos – não significam nada. E, ao mesmo tempo, é tudo, pois, como diz a máxima das eleições majoritárias, “o vencedor tudo leva”. E agora?
O gesto de reconhecimento à vitória de Lula veio, primeiro, de uma justiça ativa. Passada toda esta efervescência (se passar), precisaremos conversar, de maneira respeitosa, sobre os exageros do Judiciário. Nunca em tom acusatório de favorecimento a este ou àquele lado, mas principalmente no sentido de encontrarmos o meio-termo para suas posturas. Para além do contato de Alexandre de Moares, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que disse ter ligado para Bolsonaro e Lula, foi o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, quem deixou de votar para acompanhar todo o processo de apuração em Brasília. E foi o presidente da Câmara, Arthur Lira, quem veio a público, como bolsonarista convicto, cumprimentar Lula, observando que o instante é de convergências possíveis. Pois bem. Bolsonaro ficou isolado em sua residência oficial, e pouco se sabe dele até a hora do almoço de segunda-feira. Pipocam, pelo País, gestos isolados e manifestações de fechamento de rodovias, o que não podemos deixar de tratar dentro do mesmo peso que ofertamos a tantas outras manifestações que ocorrem historicamente no Brasil. E agora?
Numa semana intensa, que começou com os atentados de Jefferson; passou pela trapalhada das rádios, com um presidente já demonstrando sinais de isolamento dentro do próprio ministério; chegou à deputada justiceira empunhando arma fogo nas ruas de São Paulo e se encerrou com as blitzes da Polícia Federal, a cereja do bolo, definitivamente, foi o sumiço do mandatário derrotado. Resta agora notar o que será de Bolsonaro. Sabemos que o bolsonarismo é um “estilo de vida” que caracterizará (e sempre caracterizou) muitos dos brasileiros – e de cidadãos espalhados pelo planeta. Contudo, o que efetivamente será de quem “dá nome ao fenômeno”? Dois personagens da nossa política, ideológica ou fisicamente próximos do atual presidente podem dar boas pistas: Bolsonaro seguirá o “me esqueçam” de Figueiredo, que nem sequer deu posse a José Sarney, ou o “não me deixem só” de Fernando Collor de Mello, que saiu do Planalto pela porta lateral? Difícil dizer, mas o silêncio do presidente é irresponsável, desrespeitoso, desnecessário e quase nada democrático.
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