Artigo

A estratégia do negacionismo

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
V
Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Vestindo um gorro de lã (e em meio à pandemia de covid-19), Eduardo Bolsonaro grava um vídeo durante o inverno de 2020 nos Estados Unidos. Diante de um cenário tomado pela neve, ele manifesta espanto com o frio e exclama: “Que tipo de aquecimento global é esse?!”, concluindo com um conselho para os seguidores: “Não deixe que o discurso, principalmente dos globalistas, que é cheio de mentiras, se torne verdade”. 

O raciocínio do deputado federal ignora que a ocorrência de invernos rigorosos não é incompatível com o aumento da temperatura média da superfície do planeta. A suposta “mentira” denunciada é consenso científico, mas o fático aquecimento global parece poder ser contestado por qualquer pessoa. Segundo Tatiana Rocque, professora titular na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-secretária de Ciência de Tecnologia da prefeitura carioca, até pouco tempo atrás, a frase “É comprovado cientificamente” era carregada de eficácia argumentativa. Hoje, porém, há desconfiança em torno da ciência e um ceticismo generalizado nas instituições produtoras de conhecimento. 

A crise de confiança que atinge tanto a ciência quanto a política nascem de uma estratégia de comunicação desenvolvida pelas técnicas da pós-verdade. Essas técnicas buscam produzir desconfiança em relação a fatos objetivos. A utilização recorrente da desconfiança como técnica de comunicação nos discursos midiáticos e governamentais teve como imediata consequência ofertar forte centralidade às crenças pessoais na formação da opinião pública. Além disso, esse método gera terreno fértil para fomentar teorias do inimigo comum. A pós-verdade, assim, não designa apenas o uso oportunista da mentira (embora frequente). O termo sinaliza, acima de tudo, um ceticismo quanto aos benefícios das verdades que outrora compunham o nosso repertório comum. 

No livro Os engenheiros do Caos: como as ‘fake news’, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições (editora Vestígio, 2019), o ensaísta italiano Giuliano da Empoli argumenta que a “arte da política” contemporânea parece como um bom western norte-americano. Nesse sentido, o estímulo dessa nova forma de fazer política se sustenta na exposição midiática excessiva do caos e da constante emulação de uma crise infindável. Os “engenheiros do caos”, ao entenderem que esse mal-estar poderia se transformar em formidável possibilidade política, utilizaram a sua magia para multiplicá-lo. 

Segundo Empoli, a causa real de todo esse problema é a desintegração do tecido social e, com ele, de certos ordenamentos político e cultural hegemônicos, até alguns anos atrás, das sociedades capitalistas liberal-democráticas. Por força do reordenamento neoliberal, promovido e patrocinado, paradoxalmente, por essas mesmas democracias, chegamos à fragmentação do mundo do trabalho e à emergência de ressentimentos sociais catalisados pelas “redes”. Assim, as “redes sociais” não seriam a “causa”, mas apenas o meio para arregimentar e mobilizar ressentimentos e ódios a favor de causas fundamentalistas.

Sigmund Freud, em Psicologia das massas e a análise do eu (1921), já alertava que esse tipo de discurso sobre o caos servia para gerar um tipo de coesão social fragmentada. E indicava que o caminho político autoritário para sair dessa anomia seria apostar em lideranças políticas que encarnassem a figura do homem comum. Todavia, não poder-se-ia tratar de um homem comum qualquer, mas de um homem ressentido e raivoso, que entendesse que as velhas regras da decência e da virtude foram feitas para os perdedores. Estes, por sua vez, não teriam coragem e “macheza” suficientes para serem simplesmente eles mesmos.

Diz Empoli que os algoritmos são desenvolvidos e instaurados pelos engenheiros do caos para dar a cada indivíduo a impressão de estar no front de uma guerra — e de, enfim, poder ser ator político. A frase implícita, nesse tipo de algoritmo, é: retome o controle. Se o sujeito está no front de guerra, vale tudo, inclusive, torna-se legítimo violentar e agredir o suposto inimigo e considerar a si mesmo como uma vítima em absoluto. Isso funciona especialmente se os canais da mídia tradicional normalizam e justificam essas práticas e políticas de pura violência que prezam pelo apagamento do “outro”. 

Assim, o efeito dessa engenharia do caos não é somente faltar com a verdade, mas promover a contínua reafirmação da lógica de guerra que incita a descrença na política e, especialmente, na esfera pública. E esse alarme já ultrapassou tanto a tragédia como a farsa. 

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