Artigo

A guerra dos tucanos

Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

FIASCO! Arthur Virgílio, um dos pré-candidatos a presidente pelo PSDB, deu esse qualificativo às falhas operacionais e aos acotovelamentos, rasteiras, xingamentos e acusações cruzadas entre claques políticas concorrentes que deram a tônica das prévias tucanas neste 22 de novembro. Grande parte da imprensa seguiu o mote. E assim ficou para a história o registro da primeira tentativa de eleição interna para sagrar o seu candidato ao Executivo Nacional: um fiasco!

Vexatório foi, não restam dúvidas. Porém, envolto na fumaça desse incêndio, há algo mais profundo. Por que, afinal, um partido que sempre foi comandado por poucas lideranças resolveu “sair da sua zona de conforto” e se aventurar no pantanoso terreno das eleições internas? Está aos olhos de toda a gente: incapaz de se unir em torno de uma candidatura incontestável e, com ele, sair à cata do eleitorado perdido, o tucanato não teve outra hipótese para resolver as suas pendengas internas, cada vez mais irreconciliáveis. Era isto ou as armas!

Mas, ao que parece, isto levou às armas. Ir às prévias com um partido rachado, longe de restaurar a unidade, costuma ser a forma mais rápida e irreversível de ir às vias de fato. Tiro e queda: poucas vezes – talvez, nunca! – os tucanos se bicaram tão agressivamente em público.

Indignado com os rumos do partido nos últimos anos, Virgílio aponta o dedo para Aécio Neves, e o acusa de ser a “maçã podre” que está a empestear a organização. Segundo ele, o PSDB se apequenou, aproximou-se demais de Bolsonaro e já corre o risco de ser mais um integrante do bloco fisiologista do “centrão”. Fustigado, e mantendo o nível “frutífero” das farpas, o político mineiro acusa o político amazonense de ser apenas um “laranja” da candidatura de João Doria – este sim, o verdadeiro responsável pelas discórdias no seio do tucanato.

Isso faz algum sentido. Apadrinhado por Geraldo Alckmin, Doria entrou no partido com ares de Júlio César: veni, vidi, vici! Empreendeu esforços para assumir o controle da sigla em São Paulo e pavimentar o seu caminho até o topo da rampa do Palácio do Planalto. Dominar o partido no Estado, certamente, é crucial, pois, além de ser o maior colégio eleitoral do País, é nessa praça que o PSDB é mais poderoso. Além de eleger governadores desde sempre, pode-se dizer, o tucanato paulista exerce amplo predomínio nas indicações de candidaturas à Presidência da República – exceto em 2014, quando o próprio Aécio quase levou o partido a recuperar o cargo após 12 anos ininterruptos de governo petista, todos os demais concorrentes foram líderes políticos baseados em São Paulo (Covas, FHC, Serra e Alckmin).

Esse espírito conquistador, entretanto, contribuiu para levar os tucanos à beira do fratricídio. Diante da possibilidade de que o seu, agora, desafeto se imponha de vez dentro da organização, Alckmin aguarda o desfecho do embate Doria/Virgílio versus Leite/Aécio/Jereissati para responder definitivamente à fatídica questão que o atormenta há um bom tempo: should I stay or should I go? Enquanto isso, os apelos de Fernando Henrique Cardoso ao senso de unidade caem nos ouvidos moucos das facções beligerantes; e não somente porque o fígado não possui a qualidade da audição, mas também porque o poder de influência do presidente de honra do partido já não é mais do que uma pálida neblina, que, embora turve um pouco a visão, não impede a marcha.

Portanto, esse belicoso processo das prévias, cujo ponto culminante foi, sintomaticamente, o anticlímax da votação a distância dos militantes, deixou fraturas expostas. A sua cicatrização, se cicatrização houver, não evitará deformidades; e pior, se o ferimento gangrenar – e há sinais de tecido morto –, a parte atingida, muito provavelmente, será extirpada. A gangrena se alastra, sobretudo, porque a cizânia não se restringe às prévias. Desde a posse de Bolsonaro, o partido tem votado dividido no Congresso – inclusive, para favorecer a agenda governista, parte da bancada contraria as orientações da liderança.

Ao fim e ao cabo, parece que os tucanos se digladiam para saber qual grupo ficará e qual deixará o partido. Quem perder a disputa terá forte motivação para fazer as malas e ir-se embora; quem ganhar tentará juntar o que restou da organização para avançar, mas talvez em direção ao cadafalso de uma provável derrota em 2022. Afinal, a ferocidade das disputas internas não somente enfraquece o partido como o descredencia como protagonista da almejada frente de centro-direita, que, com olhares cobiçosos, mira o eleitorado “nem-nem”.

Sem o partido como o polo aglutinador das forças que querem descartar Bolsonaro e, ao mesmo tempo, contraporem-se ao PT, os “nem-nem”, atônitos, poderão se converter num eleitorado “quem?-quem?”: Leite/Doria? Ciro? Moro? Ou seja, a ausência de coordenação das candidaturas, muito graças às desavenças internas do PSDB, fragmentará demasiadamente qualquer alternativa a Bolsonaro e Lula. Leite, por exemplo, já disse que, se vencedor, não aceita ser candidato a vice-presidente de ninguém; se vitorioso, Doria tampouco se contentará com a posição de chefe beta à sombra do líder alfa. Que não se espere de Ciro posição semelhante. Moro, que tem tudo para dar com os burros n’água na corrida presidencial, está mais propenso a concorrer ao Senado; porém, se candidato for, pode retirar nacos preciosos de votação de Ciro e de quem quer que seja o candidato do PSDB.

Além de tudo, esse entrevero talvez seja “muito barulho por nada”. A última pesquisa de intenção de votos, da Quaest, divulgada no dia 10 deste mês, mostra que, até aqui, Doria tem apenas 2%, e Leite, menos ainda, 1%. Nesse cenário, o PSDB já será vitorioso se perder com uma votação acima dos inacreditáveis 4,76% obtidos por Alckmin em 2018.

Este pode ser o alto preço cobrado pela guerra civil que toma conta do partido: entrar em processo de extinção. Se tal coisa vier a ocorrer, será uma grande perda para a democracia brasileira, pois, assim como a ave que a simboliza, a sigla já desempenhou relevantes funções para a manutenção do equilíbrio da nossa fauna política.

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