O início dos trabalhos das CPIs e CPMIs no Congresso parecem fazer jus à sarcástica sentença de Heidegger citada por Hannah Arendt no livro Homens em Tempos Sombrios: “Das Licht der Öffentlichkeit verdunkelt alles”(“A luz do público obscurece tudo”, em tradução para o português). Num período em que o País deveria estar se mobilizando para reconstruir uma sociedade ainda enlutada depois de mais de 700 mil mortos e uma economia fragilizada, estamos direcionando o debate público a temas que ou estão sendo considerados na arena incorreta, como é o caso da CPI do 8 de Janeiro, ou que visam tirar a poeira de temas polarizadores desgastados e anacrônicos, como a CPI do MST.
Em vez de discutirmos os pontos a favor e contra a Reforma Tributária (e qual reforma), estamos falando de bate-boca e tumultos em sessões sem qualquer ganho para o debate público democrático, mas repletas de “cortes” para as redes sociais dos deputados participantes. O instrumento é novo, mas a prática, antiga. Não é de agora que o que há de pior no Legislativo coincida com o que gere mais visibilidade. Isso não é particular do Brasil. Para além disso, o início da nossa democracia ficou marcado pela CPI dos Anões do Orçamento, que culminou no impeachment de Fernando Collor. Simbolicamente, entre nós, o termo “CPI” tem uma conotação justiceira.
É evidente ser desejável (e salutar!) que o Legislativo cumpra a sua função de fiscalizar a atuação do Executivo ou de outros atores que não estejam corretamente responsabilizados por algo. Nosso questionamento está na característica de autofagia dos membros de corpos legislativos brasileiros. Isto é, raros são os parlamentares que não caem na tentação de repetir o discurso de que os políticos não prestam — exceto ele mesmo, claro. Mais uma vez, isso também não á particularidade do Brasil.
A dificuldade em se responsabilizar membros individuais de corpos coletivos não é uma questão nova, tampouco se restringe à realidade brasileira. No campo da ciência política, isso foi chamado de dilemas da accountability coletiva — uma vez que o principal (o eleitor) tem dificuldade em identificar a parcela de participação do agente (o político) numa decisão fruto de um trabalho coletivo do parlamento. Disso decorre que muitos parlamentares buscam reclamar crédito por decisões populares para os respectivos eleitorados, porém nenhum parlamentar quer ser responsabilizado por decisões impopulares.
Esse dilema de responsabilização individual de entes coletivos resulta em comportamentos parlamentares individualistas e, muitas vezes, mesquinhos. Um deles é o instituto da autoria dos Projetos de Lei (PLs). Com a regra do arquivamento da maioria das proposições ao fim da legislatura, é comum que parlamentares reapresentem projetos de congressistas não reeleitos com seus nomes. O detalhe é que se o parlamentar quisesse ver aprovada a pauta, seria mais interessante pedir o desarquivamento do projeto ao invés de reapresentá-lo. No entanto, como reclamar o crédito é mais importante que a pauta em si, a prática da reapresentação é frequente.
Da mesma forma, é desejável e esperado que, numa democracia representativa, a oposição tenha uma proposta de país diferente do governo eleito e que atue no parlamento visando implementar essa visão — que, em tese, é compartilhada pelos que a elegeram. O principal instrumento de agregação de preferências coletivas nas democracias representativas contemporâneas são os partidos políticos, estes também cheios de problemas de implementação, inclusive de ordem democrática (ausência de debate e deliberação para as decisões internas). No entanto, o individualismo exacerbado e a ausência de proposta comum da oposição são remédios que geram um efeito colateral mais danoso que a própria doença da falta de democracia interna dos partidos.
A estratégia de instalação de inúmeras CPIs e CPMIs no Congresso denota a falta de projeto de País coletivo por parte da oposição ao governo ou, pelo menos, a ausência de um projeto defensável publicamente. Enquanto nos surpreendemos com notícias de bate-bocas e vídeos de 30 segundos do nosso parlamentar preferido “lacrando”, o Legislativo, como corpo coletivo, segue perdendo legitimidade. Nosso parlamentar preferido bem que tentou, mas não conseguiu remar contramaré; ou, pior, nenhum político presta e não há caminho possível para melhora do Brasil por via política.
Não é possível dizer com certeza que os tempos sombrios terminaram, mas a fala de Arendt sobre o início do século 20 nunca foi tão atual: “A história conhece muitos períodos de tempos sombrios, em que o âmbito público se obscureceu e o mundo se tornou tão dúbio que as pessoas deixaram de pedir qualquer coisa à política além de que mostre a devida consideração pelos seus interesses vitais e liberdade pessoal”[1].
[1] Arendt, Hannah. Homens em tempos sombrios. Editora Companhia das Letras, 2008.
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