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A mediocridade nacional exposta na Educação

Carlos Sávio Teixeira
é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professor na Universidade Federal Fluminense (UFF).
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Carlos Sávio Teixeira
é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professor na Universidade Federal Fluminense (UFF).

A mediocridade brasileira, entendida como o rebaixamento de expectativas que cultivamos acerca do País, pode ser aferida de várias maneiras e em diversos domínios — mas, em todos os casos, o traço psicológico saliente é a pouca ambição. O fato de Paulo Freire ser considerado, atualmente, o patrono da Educação nacional é revelador do estágio da desorientação alcançada pelo Brasil no campo educacional. Não apenas pelo fato de as ideias de Paulo Freire serem questionáveis em inúmeros aspectos, mas principalmente porque a maior figura do nosso pensamento e da nossa prática educacionais é Anísio Teixeira. O contraste entre as pedagogias de ambos e a ênfase referencial na figura de Freire revelam a barafunda em que nos encontramos.  

Toda ideia consequente sobre a educação e os seus processos parte de pressupostos teóricos a respeito da humanidade e da sociedade. Freire é um intelectual influenciado pelas ideias marxistas. Essa tradição de pensamento tem como uma de suas marcas a dificuldade do trato de questões institucionais, sem reduzi-las a epifenômenos da estrutura econômica das sociedades. Será precisamente esse aspecto do marxismo que Freire abraçará com grande entusiasmo. O Estado, na sua visão, é percebido como um agente da dominação de classe, e as políticas públicas educacionais precisam ser descoladas da sua intervenção. 

A partir dessa concepção, Freire dedicará atenção à educação popular, concebendo um método que reduz o nível exigido pelas abstrações do processo educacional normal e articulando o processo de aprendizagem ao contexto do aluno pobre. Essa ênfase na pobreza é a razão principal de toda a sua fama. Uma grande parte dos chamados progressistas, desencantados com os frutos da história contemporânea após o colapso do socialismo real, refugiou-se no culto à pobreza e aos dominados, supostamente portadores de uma moralidade superior. Esqueceram-se da advertência de Roland Barthes, para quem as falas dos oprimidos só podem ser pobres. De toda sorte, o método de alfabetização desenvolvido por Freire, voltado especialmente à aplicação em adultos, logrou grande eficácia e deve ser considerada a sua contribuição mais importante à pedagogia. 

Antes de abraçar inteiramente o marxismo e os desígnios da práxis revolucionária como guia espiritual, Freire teve um estágio nacional-desenvolvimentista, sob a influência de algumas ideias do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). No entanto, após o golpe de 1964 e a experiência do exílio, ele se convenceu de que a relação entre processo educacional e desenvolvimento socioeconômico é parte mantenedora do regime capitalista, e todo o esforço de sua ideia pedagógica é voltado a fomentar, no aluno, uma consciência crítica a respeito da maldade da sociedade existente, que o leve a integrar uma grei de revolucionários. 

Nos anos de 1980, o campo chamado de progressista experimentou uma adição intelectual no repertório: a ideia de participação. Freire se deixará influenciar por essa nova orientação do conflitivismo esquerdista, oriundo da mesma cepa da razão anti ou extra-institucional, característica do criticismo que sempre guiou a esquerda convencional. A agenda da participação se adequava melhor aos movimentos sociais que emergiam, sem horizonte revolucionário. Será essa perspectiva que, quando instada a dirigir o sistema educacional na cidade de São Paulo — quando foi secretário de Educação do governo petista de Erundina —, o impediu de deixar um legado institucional, como o fez justamente o outro grande personagem desta discussão: Anísio Teixeira.

A empreitada de Teixeira se assenta em premissas intelectuais muito distintas das de Paulo Freire. Sai de cena o marxismo e entra o pragmatismo filosófico, especialmente a a perspectiva experimentalista. O sentido da educação deixa de ser o da emancipação dos “oprimidos” e passa a ser o de engrandecimento de todas as pessoas comuns pela elevação contínua das próprias capacitações. A escola não mais é percebida apenas como instrumento de reprodução das desigualdades sociais, mas também como um dos espaços da representação e da metabolização genuinamente republicanas. Na concepção anisiana, há uma forte interação entre democracia e educação, na medida em que ambas operam na base da cooperação reflexiva.   

A principal ideia da pedagogia de Teixeira, tributária do pragmatismo, é a de experiência e de experimentalismo, que condensam outras grandes noções derivadas do arco de pensamento pragmatista, como contingência, consciência, agência e futuridade. A consciência entendida como resultante do fluxo de atividades, cuja dilatação na realidade possibilita conquistas do humano sobre a natureza e a vida, age como pressuposto do experimentalismo como prática social básica da educação e da democracia, o qual, nesse diapasão, representa uma alternativa à noção, cara ao marxismo, de crise — sempre entendida como a parteira de mudanças. O experimentalismo se destina, justamente, a dispensar as crises como meio para se alcançar as transformações. 

A escola e a sociedade democrática podem compartilhar uma concepção da inovação e do processo de sua irrupção. Essa relação é mais bem compreendida quando considerada, por exemplo, na relação entre ciência e mundo produtivo. Nessa abordagem, a construção dos modelos explicativos radicaliza uma das características do conhecimento científico: o entendimento de que a compreensão do funcionamento de uma realidade requer a descoberta de condições, direções e limites das possíveis transformações. Essa ampliação do campo de oportunidades não aproveitadas, sem que se descarte nenhuma de suas possibilidades — nem as mais distantes da realidade existente —, é pressuposto central operativo da visão de ciência. Entendida assim, a ciência (e a educação) não é a base da produção, mas a própria produção.                

O experimentalismo institucional voltado à educação, no pensamento de Teixeira, logrou resultados teóricos e práticos que acabaram por formar um programa pedagógico de larga e longa duração na história republicana brasileira. Desde a década de 1920, a ação pública do educador se fez presente na construção da educação nacional. Na fase inicial, o centro da sua empreitada foi a defesa da escola pública e laica — contra os fortes interesses da Igreja Católica. Em seguida, tornou-se um agente a circular com desenvoltura pelo interior do Estado brasileiro, em exercícios de cargos como o de secretário de Educação do Estado da Bahia na década de 1940, onde idealizou e conduziu o projeto das escolas-parque, pioneiro na implementação de ensino técnico-científico conjugado com o ensino geral e em horário estendido. A rejeição ao dogmatismo e ao enciclopedismo e a aposta nas capacitações foram o norte da sua pedagogia.  

Esse processo de tradução dos ideais educacionais em compromissos normativos explica como Anísio Teixeira se tornou um construtor institucional exemplar. Fundou a Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro (então distrito federal), que foi posteriormente fechada por Getúlio Vargas. Aliado ao então ministro da Educação do governo João Goulart, Darcy Ribeiro, com quem teria intensa colaboração, seguiu criando e inovando na faceta de “fazedor”. Juntos, fundaram a Universidade de Brasília (UnB). Antes, Teixeira colaborou na formação da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), assim como trabalhou no desenvolvimento do atual Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), que, atualmente, leva o seu nome. Nessa fase final, metabolizaram-se o pensador pragmatista da democracia com o educador e gestor vidrado no futurismo.  

A situação dramática da Educação brasileira exige o abandono de duas práticas corrosivas que nos têm pautado: de um lado, a complacência com a mediocridade, disfarçada por adesão a slogans confortáveis e enganosos como inclusão; de outro, a aceitação e a naturalização dessa mediocridade como horizonte dentro do qual devemos operar, o que justifica o predomínio no debate público brasileiro da ideia de ganhos marginais, como se fôssemos um país europeu. O enfrentamento da desorientação geral e da falta de esperança naqueles que são sérios e cientes da barafunda em que estamos estacionados requer, como ponto de partida, um balizamento adequado acerca das contribuições de nossos mais importantes pensadores educacionais.

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