Artigo

A nova onda do fundamentalismo religioso

Helga Almeida
é doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP) da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Helga Almeida
é doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP) da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Neste janeiro, estava eu, minha mãe e minha filha em um grande shopping em Belo Horizonte, e, “do nada”, surge um moço, enquanto comíamos, e pergunta se poderia orar por nós. Fiquei surpresa com a abordagem. Será que comer hambúrguer seria tão pecaminoso assim? A coisa passou, e lá estou eu, meu marido, minha filha e meu pai em um bloco de carnaval. De repente, um grupo distribui água. Pensei: “Deve ter sido pago pela prefeitura ou por alguma empresa que financie o bloco”. Depois que peguei a água, o moço disse que esta já “tinha sido paga por Jesus”. Fiquei meio desconfiada. Depois, pensei: “Jesus, aquele que transformou água em vinho, vai pagar água? Será que já não tem a bebida pós-transformação, não?”. Em meio a isso, também aconteceu aquela história esquisitíssima na qual a cantora Baby do Brasil (agora, “Baby das Nações”), em pleno trio elétrico da Ivete Sangalo no carnaval de Salvador, diz: “Todos atentos, porque entramos em apocalipse. O arrebatamento tem tudo para acontecer entre cinco e dez anos. Procure o Senhor enquanto é possível!”.

Brincadeiras à parte, ficou-me um estranhamento em relação àquelas abordagens de religiosos em lugares “mundanos”. Só comecei a entender por onde a coisa se localizava quando li tweets[i] do amigo Joscimar Silva, meu colega no doutorado na UFMG e, hoje, professor na Universidade de Brasília (UnB). Ele apontou, em um interessante fio no Twitter[ii], que o que achei que era casualidade não era tão “do nada” assim. Segundo Joscimar, o que estaríamos vendo seria o avanço da “coalizão apostólica global”. Esse movimento inaugura a Teologia do Domínio, que entende que a sociedade se constitui por “montes sob os quais o conservadorismo cristão deve governar”. Seriam esses montes a “igreja, a educação, a ciência, a economia e os negócios, o governo, a cultura e o entretenimento”. Assim, pretende-se restaurar “o governo apostólico” e colocar sob domínio de uma rede de apóstolos tanto outros segmentos religiosos, inclusive os cristãos, quanto todas as outras atividades sociais. Assim, se em anos anteriores, no carnaval, alguns desses grupos estariam em retiros espirituais, agora, estão tentando se apropriar do movimento e o ressignificando à própria forma. A disputa é também no campo da cultura.

No último 25 de fevereiro, também pude ver algo que coaduna com tudo isso. No ato de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro na Avenida Paulista, Michelle, no meio do seu discurso, diz: “Sim, por um tempo fomos negligentes ao ponto de dizer que não poderiam misturar política com religião. E o mal tomou e ocupou o espaço. Chegou o momento, agora, da libertação. ‘Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará’”. Michelle retoma, assim, uma questão resolvida nos idos do iluminismo e resgata a ideia de um Estado religioso. E o pior: não foi só ela, segundo o colega Emerson Cervi, professor na Universidade Federal do Paraná (UFPR), aquele foi um evento que a religião esteve no centro. Segundo a sua análise — que acompanhou a Rádio Auriverde (no YouTube), uma das mais vistas por bolsonaristas, que chegou nesse dia a ter 130 mil pessoas simultaneamente —, das palavras mais faladas nos comentários, estavam “Deus” e “glória” em meio a “Bolsonaro” e “presidente”[iii].

Tudo isso é preocupante por diversas razões. Primeiro, eu me pergunto se novamente trilharemos caminhos que nos levarão a trocar uma dominação de caráter racional, que se baseia objetivamente na legalidade formal, para uma dominação tradicional, baseada em crenças tradicionais. Isso seria um total retrocesso. Seria a re-secularização do Estado.

Em segundo lugar, são as elites do poder que ditam por onde a sociedade caminhará. Se parte da elite brasileira vai a público abertamente para dizer que o governo tem de ser balizado pela religião, não estaríamos, então, flertando com um futuro Estado fundamentalista? Qual a diferença disso para algumas ditaduras religiosas que vemos ao redor do mundo? Ainda me preocupa a “violência simbólica” nas abordagens que fui submetida. Então, não há, agora, lugares neutros ou que se possa estar alijado de disputas de religiões por fiéis ou por tentativa de cooptação de espaço por religiosos?

E, por fim, quem perderá com o crescimento do conservadorismo? Essa pergunta, acho que todos sabemos responder. Não é à toa que uma pesquisa realizada pela Universidade Stanford com pessoas de menos de 30 anos concluiu que, quando se trata de política e ideologia no geral, há uma grande lacuna na qual mulheres são mais progressistas e homens mais conservadores. Sintomático.


[i] https://twitter.com/JOSCIMAR144/status/1756904281259569661.[ii] Recuso-me a falar “X”.[iii]https://twitter.com/Ecervi/status/1761899350131613791.

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