Artigo

A renda nossa de cada dia

Altamiro Carvalho
é assessor econômico da FecomercioSP  
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Altamiro Carvalho
é assessor econômico da FecomercioSP  

Diante da pandemia de covid-19, o tecido socioeconômico das famílias brasileiras vem passando por transformações que merecem ser observadas. No primeiro semestre deste ano, por exemplo, quase oito em cada dez famílias (78%) tiveram redução na renda. Esse porcentual abrange famílias das classes A, B, C e D,  excluindo a população de classe E – é o que mostra o estudo Consumo e Renda das Famílias, da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP).

O levantamento registrou, no entanto, que, se consideradas todas as classes, houve aumento de 3,3% na renda familiar no período – ainda que o senso comum possa levar a conclusões contrárias, em razão do agravamento da crise sanitária. Um dos fatores que contribuíram para essa elevação foi a injeção do auxílio emergencial nos rendimentos da classe E, que representa 22% da população (com renda até R$ 1,95 mil). Esse estrato social teve aumento de quase 63% na renda. Assim, a queda provocada pelo aumento do desemprego, a insegurança e as mudanças de hábito, durante a pandemia de covid-19, tiveram o seu impacto mitigado pelo dinheiro injetado na economia como um todo por intermédio do auxílio emergencial.

Embora o foco da distribuição de renda pelo governo federal tenha sido acertado, a magnitude do auxílio pode ter sido exagerada. Isso porque o consumidor sentiu os efeitos no comportamento dos preços. É sabido que a propensão ao consumo de itens básicos se concentra nas faixas mais baixas de renda, enquanto os serviços têm maior índice de consumo pelos mais ricos.

Desta maneira, foi imposto um choque de demanda sobre alguns itens, como o já famoso caso do arroz – que registrou alta em razão de fatores combinados, entre eles as flutuações do câmbio e o aumento de demanda, além de gargalos na produção, entre outros. Este exagero pode ter permitido um aumento de preços um pouco maior do que o desejado em itens básicos, causando um efeito reverso – e, acima de tudo, perverso – de impor aos mais pobres um encarecimento no custo de vida maior do que o infringido aos mais ricos.

Ao cenário econômico atual, adicionamos o risco de alta na inflação, já que os preços dos artigos consumidos crescem. Contudo, o índice de inflação considera uma média de preços, inclusive do que não se consome neste momento, como lazer e turismo.  Em uma breve ilustração desta disparidade, podemos citar os gastos com alimentação, que somam 10% do total de gastos médios dos brasileiros, mas representam 17% das despesas das famílias com renda até R$ 1,95 mil e apenas 4% das famílias de renda superior a R$ 16,9 mil (classe A). Por enquanto, não observamos subida da inflação justamente porque há itens que não estão sendo consumidos em escala, como entretenimento em geral, que costumam pesar mais no orçamento dos mais ricos. É provável que a retenção no consumo esteja levando a uma formação de poupança forçada nas famílias mais abastadas. Todavia, cabe saber como ficará o tecido econômico e de que maneira o desemprego afetará, nos próximos meses, o orçamento familiar em cada faixa de renda.

Possivelmente os extremos estarão menos suscetíveis aos problemas no curto prazo, já que os programas de renda devem ser mantidos para faixas de renda muito baixas, ainda que em menor escala. No lado oposto, há uma possibilidade de ter havido mais poupança e maior preservação do emprego.

O alerta fica para que o Poder Público atente, nos próximos meses, ao grupo do meio, que concentra mais de 70% da população brasileira – dos quais, 53,7% fazem parte das famílias na classe C, e 17,9%, na classe D. Essas classes tradicionalmente abrigam um significativo volume de profissionais de média especialização, que acabam enfrentando mais dificuldade no mercado de trabalho em tempos de crise. A tendência nesses períodos é que a busca dos empregadores se concentre nos polos extremos, ou seja, nos graus mais elevados de especialização e na mão de obra mais barata, com baixo nível de formação.

Ao mesmo tempo, essas classes (média e média baixa) mantêm uma estrutura de consumo ampla, exposta aos impactos de preços a uma gama maior de produtos e serviços, muito característicos de momentos de grande volatilidade de oferta e demanda, em função de câmbio e eventuais gargalos de produção.

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