Uma série televisual recente, Missa da meia-noite, dirigida por Mike Flanagan, leva-nos a pensar sobre moralização e política. Flanagan conta que a ilha Crockett, nos Estados Unidos, foi atingida por crime ambiental causado por uma grande petroleira, que poluiu de tal forma suas águas que a região perdeu grandes cardumes de peixes. Tal situação gerou êxodo dos pescadores e trabalhadores da ilha, que foram obrigados a fugir da pobreza e da fome causadas pelo crime. Berverly Keane, a líder da comunidade cristã de Crockett, conduziu os acordos dos pescadores com a petroleira e incentivou negociação de forma individual e sem grandes debates com a comunidade. Alguns habitantes da ilha afirmam que ela teria recebido dinheiro da petroleira e “lavado” este dinheiro na construção de um centro de difusão cristã, que teria como função adaptar os desviantes do caminho religioso da comunidade aos ditames da própria líder.
Nesta situação de crise econômica, chega à ilha de Crockett um “novo” pároco, que encarna as renovações espiritual e política tão almejadas pela comunidade. Aos poucos (cuidado com o spoiler!), descobre-se que o novo pároco é a versão vampiresca e rejuvenescida do velho padre, de volta de uma viagem espiritual em Israel. O pároco e a líder cristã, com a ajuda do Anjo da Morte (um grande vampiro com asas) trazido da Terra Santa, vão iniciar um processo de mutação da comunidade mediante a comunhão em Cristo. Com base no “banho de sangue” o trio resolve operar a transformação do povo da ilha em monstros sanguinários como se isso fosse obra de um grande plano divino de purificação e regeneração física, moral e espiritual.
Nos primeiros capítulos da série, já lembrei do livro de Wendy Brown – O pesadelo norte-americano: neoconservadorismo, neoliberalismo e desdemocratização –, no qual a autora alerta para o fato de que a nova aliança feita entre neoconservadores e neoliberais está promovendo a destruição lenta, gradual e interna das instituições democráticas nos Estados Unidos.
A Missa da meia-noite trata desse pesadelo, que, para alguns, aparece como o mais suave sonho: Que a democracia esteja sendo destruída e que ninguém sinta pavor com isso. O sonho dos neoconservadores é justamente que ninguém perceba que a destruição do comum e da democracia são os combustíveis da “nova aliança” que se apresenta como purificadora mas se traduz de fato em uma sociabilidade antropofágica.
Faz tanto tempo que estamos assistindo ao desmantelamento do projeto democrático, que começamos a naturalizar o seu processo de degeneração. As decisões do Povo foram paulatinamente substituídas por sentenças e planilhas, resultado da financeirização da política que transformou o Estado em um Leviatã necroliberal.
Quem traz o anjo da morte para o seio da comunidade é o pároco, com o projeto de arrebatamento e redenção por meio da reprodução sanguínea do monstro. Essa função de mensageiro da morte me lembrou diversas figuras. Tony Blair, o homem que se apresentava para além da direita e da esquerda na Inglaterra e que sedimentou o caminho para o impasse inglês do Brexit e da União Europeia. Jean-Claude Juncker, ex-presidente da Comissão Europeia que por 20 anos dirigiu o grão-ducado de Luxemburgo e o transformou na pátria da evasão fiscal do capitalismo. Nicolas Sarkozy que prometeu “limpar a jato” os subúrbios populares de minorias étnicas francesas. Fernando Henrique Cardoso que afirmou que o regime não pode ser dos excluídos, dos que não pertencem à “parte dinâmica da economia”.
Os mensageiros trouxeram do deserto figuras como Trump, Temer, Bolsonaro e Le Pen que agora encontrou um substituto à altura do seu projeto de redenção eugenista francês, Éric Zemmour, outro candidato da extrema-direita francesa que vem crescendo nas campanhas às eleições presidenciais de abril de 2022. Afirmando, sem qualquer pudor, ser Bonapartista e admirador do General de Gaulle e do Marechal colaboracionista Pétain, Zemmour repete o mantra de ser o grande defensor da nova missão judaico-cristã que veio conter a invasão do islã (versão francesa do comunismo).
Mal ele sabe que o povo francês já passou por uma (verdadeira) grande substituição: a soberania popular francesa já foi trocada por uma tecnocracia financeira, a troika, composta pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pelo Banco Central Europeu (BCE) e pela Comissão Europeia. Neste sentido, a troika é o sangue da conversão monstruosa, o combustível dos pregadores da nova aliança com Zemmour, que desloca o nome da causa da grande substituição para legitimar práticas eugenistas e a defesa de uma França hegemonicamente escravocrata e militarizada.
E a troika do sul global? Geralmente ela se revela mais agressiva. Na América latina, nos últimos 15 anos, ocorreram mais de 15 golpes de Estado. Ontem no Equador, o presidente Guilherme Lasso decretou Estado de Exceção. Vale lembrar que foi eleito graças à intervenção conjunta de FBI, NSA e Comissão Nacional de Valores dos EUA. Essa troika visa ampliar a intervenção jurisdicional estadunidense através do Foreign Corrupt Practices Act para falir empresas nacionais dos países que servem há muito tempo de refeição de vampiros.
Ontem me lembrei da cena que realmente me assustou na série. A cena em que o herói é devorado pelo grande vampiro e o pároco declara: Aceite, com serenidade e graça. Amém.
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