Segundo Verónica Gago[1] e Silvia Federici[2], as novas formas de economia popular são resultantes da crise do patriarcado do salário. Como assim? Didaticamente, elas explicam que o que entra em declínio com a hegemonia neoliberal é o exercício da violência do patriarcado ser realizado sob a forma salário. Não é que o patriarcado deixe de existir, mas somente tem sua violência e brutalidade deslocadas para outras formas de expropriação e exploração.
A desestruturação da autoridade masculina decorrente da perda do salário como “medida objetiva” do poder do homem dentro e fora do lar — e o declive da figura do provedor — fazem com que se amplifique a politização das tarefas reprodutivas que outrora eram confinadas ao lar[3]. Há, assim, um transbordamento do que é considerado feminino para um terreno social amplificado. Nunca é demais lembrar que a acumulação do capital se alimenta da desvalorização sistemática do trabalho reprodutivo, que se traduz na desvalorização do valor do trabalho e do trabalhador. Logo, se a todas as atividades e habilidades consideradas de reprodução e feminilizadas se imputa um desvalor, a nova forma de violência patriarcal opera com um processo de expansão do desvalor para todas as atividades laborais. Nesse sentido, a generificação da ubiquidade do trabalho desenvolvida mais intensamente nos processos de plataformização se constitui em exemplo importante desse transbordamento.
A plataformização é definida como a penetração das plataformas digitais em diferentes setores econômicos e esferas da vida. Na atividade laboral, ela reorganiza de modo profundamente desigual o mercado e as novas formas laborais, especialmente via trabalho remoto. Isso apareceu claramente durante a pandemia de covid-19, quando ficou explícita essa estratégia necropolítica do capitalismo digital[4]. Desde o início dos anos 2000, especialmente no que diz respeito às atividades da “economia do cuidado”, a plataformização do trabalho produziu um grande incremento nas disparidades das atividades realizadas pelas mulheres, não somente de remuneração, mas também de tempo e de espaço.
O trabalho digital se apresenta como formas de conciliação de duplas ou triplas jornadas de trabalho, dentro e fora de casa. Promovendo a flexibilidade e a constante adaptação das “habilidades femininas”, a plataformização cria uma forma ainda mais precária de empregabilidade e estabilidade laboral para todos os trabalhadores, mas, especialmente, para as mulheres, criando ainda mais uma redução do valor do labor feminino, considerado auxiliar.
Um novo modo particular de acumulação na economia digital acentua a confusão entre as fronteiras dos trabalhos produtivo e reprodutivo, tornando a ideia do trabalho não remunerado mais aceitável e normalizando uma nova e acentuada violência do patriarcado, e suas agressões sobre os corpos feminilizados. Para além do aumento da precarização do trabalho levada a partir da plataformização, há também a discriminação algorítmica de gênero, com o reforço do capitalismo de vigilância, eminentemente patriarcal e autoritário. Nas atividades de docência, por exemplo, mudanças fundamentais foram promovidas pela plataformização das atividades educacionais que expuseram uma “generificação” do sobretrabalho nos serviços educacionais. Tais mudanças estão associadas a um modo de tempo e espaço ressignificados, especialmente a partir dos tipos de uso das plataformas digitais.
A plataformização nos obriga a considerar as pressões pela ubiquidade como um novo problema do campo do trabalho no contexto neoliberal. O neoliberalismo promove a hiperadaptação do sujeito trabalhador a qualquer situação e pressão em busca da sobrevivência. A palavra de ordem é bastante clara: “Há de adaptar-se”, sob pena de não sobreviver à competição mercadológica imposta pelo novo capitalismo de controle e de vigilância[5]. No intuito de criar uma mais-valia cada vez maior, criam-se espaços e tempos de indiferenciação entre trabalho e não trabalho, produção e reprodução, lar e mercado.
A ubiquidade como construção social está ligada à ideia de onipresença e é caracterizada como a qualidade de o indivíduo estar, concomitantemente, presente em diferentes lugares, o tempo todo. Na cultura digital, a ubiquidade aparece atrelada ao advento da “hipermobilidade”, a mobilidade física acrescida de uma segunda mobilidade no ciberespaço propiciada pelo uso de dispositivos digitais. Por meio de tais dispositivos, os sujeitos se locomovem, individual e coletivamente, por diferentes ambientes físicos e digitais, numa mobilidade incessante e simultânea. Como disse Gilles Deleuze, nas nossas sociedades de controle, “nunca se termina nada”[6]. O propósito é formar um novo sujeito onipresente nos diferentes contextos em que realiza suas atividades, sempre disponível para as solicitações laborais. Gilles Deleuze aponta para um indivíduo “dividual” ou divisível, que tem de se desdobrar e se separar de si constantemente: “O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado […] O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado”[7]. Nesse contexto, o mundo digital sem paredes e sem confinamento funda entre si os espaços e os tempos, e a dívida é constitutiva do sujeito contemporâneo. A dívida que cada um (e cada uma) sente em relação ao tempo útil e às tarefas nunca acabadas é a nova chave disciplinadora e controladora da vida do trabalhador — e, ainda mais, da trabalhadora.
O redimensionamento do tempo e espaço de trabalho (e de não trabalho) foi amplificado e vivenciado de diferentes maneiras. Levantamentos preliminares realizados no Brasil, nos Estados Unidos e na União Europeia durante a pandemia[8] mostram que lançar mão do trabalho remoto (home office) acarretou uma série de repercussões e efeitos colaterais. A estimativa é que 22,79% dos postos de trabalho no Brasil utilizaram essa modalidade e que entre os profissionais da ciência e intelectuais, esse índice chega a 65%. A carga de trabalho e as horas trabalhadas aumentaram, bem como as dificuldades para conciliar atividades profissionais e pessoais, as quais aparecem de modo distintos com relação ao gênero. As mulheres são, nesse sentido, muito mais sobrecarregadas de trabalho que seus colegas masculinos, além de ter que dar conta da maioria das atividades domésticas. Elas também assumem o cuidado de toda a família (tanto a nuclear quanto a extensa) durante o trabalho remoto. Aliás, o problema principal é este: o trabalho feminino é sempre visto com um trabalho auxiliar, e não como o trabalho principal. Por consequência, competências, habilidades e horas trabalhadas não são valorizadas nem contabilizadas. A digitalização dos processos de trabalho contribuiu para invisibilizar ainda mais o tempo e as competências mobilizadas pelos trabalhos considerados auxiliares. Assim, se constitui uma relação de onipresença do trabalhador, com demandas e cobranças de trabalho a qualquer momento e em qualquer lugar.
Com o redimensionamento da invasão do privado e do doméstico, o trabalho vai se tornando cada vez mais “generificado”. Essa conclusão é evidenciada nas práticas de trabalho intermitente incorporadas nas lógicas reprodutivas dos trabalhadores, como responder e-mails à noite ou aos fins de semana, abusos no uso de aplicativos (como WhatsApp), uso de espaços domésticos improvisados como espaços de trabalho e compartilhados com companheiros e filhos e assim por diante.
Essas novas cobranças digitais pela “ubiquidade feminina” pulverizam o tempo e produzem um transbordamento de fronteiras entre público e privado, trabalho e não trabalho, e a técnica temporal de ser multitarefa, simultânea e onipresente em diferentes espaços. Nas atividades educacionais, em particular, esses redimensionamentos espacial e temporal foram acompanhados pela ocorrência da diversificação e da multiplicação das tarefas de ensino, administração e resposta às demandas dos discentes e familiares. E esse aumento foi gerando a precarização acentuada das condições de saúde das trabalhadoras, especialmente o aumento de ansiedade e depressão.
Novas formas digitais de controle são engendradas via tecnologias digitais, instaurando uma nova cultura do trabalho. Elas permitem conciliar atividades de trabalho e afazeres domésticos e fazem com que o trabalho colonize todos os tempos e espaços, do cotidiano particular ao público e coletivo. Ao dar a falsa sensação de flexibilidade e liberdade, a digitalização progressiva dos processos de trabalho produz uma colonização de todos os espaços da vida do trabalhador aos dispositivos de demanda digital e de produção da ubiquidade laboral. O que resta claro dessas mudanças é que não é possível fazer uma análise das mudanças no mundo do trabalho sem compreender o deslocamento da violência do patriarcado e a relação dela com uma teoria do valor social dos corpos e afazeres reprodutivos e produtivos.
Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.