Fazer uma refeição é um ato tão cotidiano que dificilmente provoca reflexões sobre o caminho que um alimento fez para chegar ao prato. Em geral, ele é longo: inclui etapas de produção, processamento, distribuição, venda e consumo, além de uma série de políticas públicas transversais a estas fases – e os impactos nas saúdes humana e planetária. Duas pesquisas recentes publicadas na revista científica Cadernos de Saúde Pública, e divulgadas pela Agência BORI, mostram que a maneira como os sistemas alimentares se organizam hoje causa problemas diversos, alguns deles vistos como missão impossível.
Um dos estudos¹, realizado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), aponta que a maioria dos profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS) vê a alimentação adequada e saudável para todos como um problema sem solução, especialmente nas periferias.
A pesquisa incluiu entrevistas com profissionais que conduzem, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), grupos educativos sobre alimentação e nutrição na APS na cidade de São Paulo, com foco em bairros periféricos. A APS é considerada uma das áreas‑chave para a efetivação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA).
Para entender como os profissionais de saúde atuavam para promover o direito humano à alimentação adequada, o estudo identificou três perfis de atuação. O primeiro tem foco apenas na dimensão biomédica da alimentação, com recomendações como a redução do consumo de alimentos que, muitas vezes, são os únicos acessíveis à população atendida.
O segundo perfil de atuação desses profissionais reconhece as complexidades do acesso a alimentos nestas regiões, mas se mostra resignado com as violações ao DHAA (com pensamentos como “melhor comer por um ou dois dias do que não comer nada”, sem preocupações, por exemplo, com a regularidade da alimentação).
Por fim, o terceiro tipo de atuação dos profissionais da saúde é mais coerente com a promoção do DHAA. São agentes envolvidos em ações de responsabilidade coletiva que integram profissionais de diversas formações, levando em conta os modos de vida das regiões periféricas. Ainda assim, não se veem como agentes de transformação: buscam problematizar o Estado e os usuários para garantir alimentação adequada e saudável a todos.
Para a pesquisadora Lúcia Guerra, que assina o estudo, compreender o que são alimentação e nutrição adequadas é um dos principais pontos para que os profissionais de saúde consigam ajudar a promover o DHAA. “É a partir desta tomada de consciência política que poderemos melhor elaborar e realizar as ações cotidianas de alimentação e nutrição na atenção primária à saúde”, afirma.
Sabe‑se que as populações de classes socioeconômicas mais baixas são mais expostas a alimentos de qualidade precária, como os ultraprocessados. Para além dos cuidados por meio de iniciativas do SUS, uma possível solução é melhorar a alimentação por intermédio de políticas públicas. Neste contexto, tramitam no Congresso Federal propostas de regulamentação de bebidas açucaradas, como refrigerantes e sucos de caixinha.
Um outro estudo², também de pesquisadores da USP, mostrou que aumentar a taxação desses produtos é tarefa árdua, já que o tratamento das propostas caminha a passos lentos no Congresso. A análise aponta que, se continuarem no ritmo atual, pode ser que nenhum dos projetos em tramitação se converta em lei até 2025, o que prejudica as metas nacionais de controle da obesidade assumidas diante da Organização das Nações Unidas (ONU).
Na pesquisa, os cientistas analisaram a situação de dez propostas apresentadas entre 2016 e 2019 na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Seis delas, que visam ao aumento da tributação, ainda se encontram em apreciação de comissões na Câmara dos Deputados, enquanto quatro, que buscavam sustar um ato normativo de aumento de tributação sobre concentrados de refrigerantes, foram registradas e arquivadas.
A tributação de bebidas açucaradas é uma política pública adotada por mais de 40 países e tem sido eficiente na redução do consumo destes produtos. O México, por exemplo, viu a venda dessas bebidas cair, em média, 6% após a adoção desta política de taxação, em 2013. O efeito foi sentido, particularmente, na camada da população de nível socioeconômico mais baixo, com redução de até 17% do consumo de bebidas adocicadas.
“No Brasil, é necessário vontade política para que essas propostas tramitem de forma ágil e impactem positivamente a saúde da população”, comenta a pesquisadora Aline Mariath, coautora do estudo. As razões que explicam amorosidade são diversas: dentre elas, está a pressão da indústria de bebidas açucaradas, setor com histórico de financiamento de campanhas eleitorais e de lobby de parlamentares do Congresso.
Ao que parece, as únicas forças que atuam para amenizar este problemas vêm da sociedade civil organizada. Exemplos são a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PenSSAN) e o Instituto Comida do Amanhã, que, com o apoio do Instituto Ibirapitanga, fornecem dados e ajudam a criar políticas públicas de alimentação e nutrição. São ações que mostram que, com boa vontade, não há problema sem solução.
Da garantia do direito à alimentação nas periferias à regulamentação de bebidas açucaradas, os desafios dos sistemas acimentares parecem intransponíveis.
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