Ganhou pauta, em todos os meios, a questão jurídica do denominado marco temporal — ou seja, a definição do estatuto jurídico constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena, à luz das regras trazidas pela Constituição Federal de 1988. Em síntese, trata-se de relevante e complexa definição do alcance das normas constitucionais que regulam os povos originários, assim como das respectivas políticas públicas, não podendo ser artificialmente reduzidas à mera narrativa de confronto político entre indígenas e agronegócio.
Num cenário político anterior, em que se tinha um Congresso Nacional altamente fragmentado, a mera ideia de definição da regularização fundiária indígena estava longe das agendas legislativas. Do mesmo modo, os altos custos políticos e sociais de uma decisão administrativa sobre o referido assunto afastaram qualquer protagonismo do Poder Executivo. Nesse ambiente de omissão dos outros poderes constituídos e de constantes episódios de disputas pela posse de terras (patrimônio da União) localizadas no Estado de Roraima, a urgência de se obter uma decisão fez surgir uma inusitada situação de judicialização da política: o caso Raposa Serra do Sol. Nele, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) tiveram que efetivamente, além de resolver o conflito constitucional existente, estabelecer critérios para a demarcação das reservas indígenas.
Entre os anos de 2008 e 2009, o STF, em sua composição existente naquele momento, dedicou-se a apreciar e resolver o caso da reserva indígena Raposa Serra do Sol (PET 3.388), após ser provocado a deliberar acerca da questão da demarcação das terras indígenas, estabelecendo 19 condicionantes para, nos dizeres do ministro Edson Fachin (RE 1017365), “o reconhecimento da tradicionalidade da ocupação indígena em área cuja demarcação se pretende, no propósito de promover a pacificação dessa grave questão étnica e social”.
Uma dessas condicionantes foi chamada justamente de marco temporal de ocupação. Naquele precedente, foram definidos dois critérios a serem simultaneamente observados quando da demarcação de uma terra indígena ou no reconhecimento judicial ou administrativo do direito à posse sobre aquela terra: 1) a data da promulgação da Constituição Federal (5 de outubro de 1988) como referencial da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene, ou seja, para o reconhecimento, aos indígenas, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam; 2) a tradicionalidade da ocupação, isto é, estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica.
Conforme ressaltou o então relator da PET 3.388, ministro Carlos Ayres Britto, a terra “[…] indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo”.
Recentemente, esse tema foi retomado pelo STF (RE 1017365) em um outro contexto sociopolítico: um Congresso Nacional dividido e polarizado, que sofre pressão da bancada ruralista para legislar em prejuízo dos interesses indígenas, e os efeitos do governo Jair Bolsonaro, que relegou a situação a segundo plano e desmontou as políticas públicas de proteção aos povos originários. Há dois pólos bem definidos nessa disputa.
Há produtores rurais que, por boa-fé ou má-fé, em algum momento pretérito e diante da omissão fiscalizatória do Poder Público, desmataram área florestal, ocuparam sem autorização terra pertencente à União, expulsaram grupos indígenas e lá começaram a produzir, conforme um discurso particular, amparado na suposta ociosidade do imóvel e na necessidade de produção de alimentos. Estes defendem que o único critério temporal a ser observado no reconhecimento da posse indígena sobre terras seja apenas a sua ocupação efetiva pelo grupo étnico na data de 5 de outubro de 1988. Assim, os povos originários não teriam direito à posse sobre terras que ocupavam antes dessa data, tampouco que vieram a ocupar posteriormente, restando apenas uma questão política a ser resolvida entre os produtores rurais e a União.
Noutro lado, estão representantes dos interesses dos povos originários, que defendem a aplicação conjunta dos dois critérios, tempo e tradicionalidade — uma vez que o uso exclusivo do primeiro critério não seria capaz de reparar as situações em que os indígenas foram retirados à força de suas terras antes da promulgação do texto constitucional, tampouco a situação daqueles que, por tradição e por seu modo de vida, se deslocam periodicamente para pontos diferentes dentro de uma grande área, por exemplo, em rodízio extrativista. Desse modo, reconhecida as posses temporal e tradicional dos grupos originários, seriam retirados das terras todos aqueles que a ocupam indevidamente, a se provar judicialmente a questão da boa-fé para efeitos indenizatórios dos produtores.
A definição do critério constitucional para a definição da posse das referidas terras, de propriedade da União, deve considerar o modo tradicional de ocupação pelos povos indígenas. Assim como assinalou o ministro Edson Fachin (RE 1017365), autorizar, à revelia da Constituição, a perda da posse das terras tradicionais por comunidade indígena significa o progressivo etnocídio de sua cultura, pela dispersão dos integrantes daquele grupo, além de lançar essas pessoas em situação de miserabilidade e aculturação. O reconhecimento devido do modo de vida de cada etnia (apurado por critérios técnicos e científicos) e a proteção desses povos ancestrais, resguardando sua relação com a floresta, sua cultura e seu conhecimento oral milenar e buscando reparação (com base em políticas públicas) à ação do colonizador, não é uma questão unicamente de direito. É uma questão de justiça.
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