“Vamos dormir que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite, vale o Príncipe de Machiavelli. Vamos dormir”.
Machado de Assis, Teoria do Medalhão — diálogo
Na transição da ditadura cívico-militar brasileira para a Constituinte de 1988, diversas lideranças políticas mobilizavam a sociedade e a política nacional em torno dos significantes da cidadania e do retorno ao Estado de direito. Para essas lideranças, da direita à centro-esquerda, o retorno ao Estado de direito significava o exercício do poder legítimo sob o império da lei, o predomínio das instituições sob os interesses privados e as garantias expressas nas liberdades civis e públicas — inclusive e principalmente o respeito aos direitos humanos e o funcionamento independente dos poderes constitucionais.
Sérgio Adorno escreveu Os aprendizes do poder[1] partindo de uma inquietação a respeito do papel dessas lideranças políticas na nova Ordem. Ele constatava que, apesar das distintas territorialidades e procedências, essas lideranças tinham emergido do campo jurídico, e suas reivindicações eram fundadas na linguagem liberal e jurídica. No entanto, segundo Adorno, essa forma de liderança não era novidade na história política e social do Brasil. Tanto no Império como na República, os políticos profissionais que tiveram presença marcante na presença de cargos públicos e da burocracia no Executivo, no Legislativo e no Judiciário eram juristas de formação e, apesar do uso da linguagem liberal e jurídica, muitos contribuíram para sedimentar o conservadorismo e o autoritarismo nas instituições da sociedade brasileira.
Adorno observou que, desde a formação do Estado Nacional, os confrontos de fato não eram entre liberais e conservadores (como se aparentava), mas entre liberalismo e democracia. Assim, a defesa de um liberalismo com ênfase nos interesses e nas escolhas individuais sobre os fins coletivos da existência social se contrapunha a um projeto de materialização da igualdade em termos econômicos, políticos, culturais e identitários. Dessa forma, todo momento de ruptura com as cadeias do passado, no Brasil, passou pela expressão de um ideário liberal autoritário[2] fundado em uma modernização[3] conservadora. O objetivo era construir fortes barreiras para bloquear a expansão e a consolidação das democracias societal e política no Brasil.
O aparente paradoxo entre projeto liberal e projeto democrático se expressou claramente em toda a história nacional. Os dirigentes políticos negavam quase que sistematicamente o apoio e o protagonismo aos movimentos populares, que poderiam ter estabelecido as bases sociais da democracia brasileira. Por esse motivo, os momentos de retorno ao Estado de direito ocorreram sob a rubrica de uma gramática antiparticipação popular e sob as vestes do juridiquês venerável.
Vale notar o que sempre pareceu uma singularidade do País: o liberalismo autoritário, portador de modernização conservadora, aparece como motor da globalização contemporânea que se difundiu por todo o Ocidente com “O” maiúsculo. O Brasil sempre foi território experimental e, de fato, vanguarda na expansão do autoritarismo pela via do discurso liberal. Chega a ser engraçado quando o ordoliberalismo e o “anarcoliberalismo” se apresentam como novidades na promoção da demofobia, assentada na gramática do Estado de direito. Afinal, o casamento do ideário liberal autoritário com a hierarquização social se revela compatível com níveis extremos de desigualdades sociais — bem como a reiteração de formas de socialização autocráticas e avessas a uma filosofia de defesa de diversas formas de vida. Até mesmo no que diz respeito à compreensão da instituição mercado: no Brasil, tal instituição sempre foi muito mais baseada na desigualdade concorrencial do que em ternos de troca de equivalências. Em consequência, o lócus ideal para a experiência que une rentismo, lógica concorrencial, eliminação da democracia e práticas autoritárias parece ser especialidade nossa[4]. Até porque sempre apresentamos o pensamento mais avançado do colonialismo, articulando de maneira consistente a escravidão e a liberdade. Sempre fomos bons defensores de Locke, o chamado “pai do liberalismo”, que era acionista da maior empresa de tráfico de escravos da época.
Segundo Machado de Assis, podemos falar do liberalismo autoritário brasileiro a partir da Teoria do Medalhão, que traduz nos corpos a lógica das aparências da modernização conservadora e seu correlato princípio de estratificação e distinção. Diz Machado que, no Brasil, todos devemos aprender a Teoria do Medalhão para usufruir de um mínimo de status e existência social. Afinal, essa revela como se produz uma subjetividade de assujeitamento na qual, para se exercer a liberdade, é necessária a obediência estrita aos princípios estritos da hierarquização social.
Vejamos como Machado narra a sociabilidade brasileira pela Teoria do Medalhão:
“Tu, meu filho, se não me engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício [de medalhão]. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição de memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas”[5].
Então, o importante é ser levado pelas aparências e nunca ter uma ideia ou propor mudanças. O importante é se calar sobre o que é relevante e motivo de indignação. O importante é desenvolver uma certa estratégia de covardia moral[6].
Calemo-nos sobre o que importa. É assim que devemos garantir a nossa reprodução social. Assim, a produção e reprodução da Teoria do Medalhão revela, mediante suas práticas, o risco constante de se tornar corresponsável pela condução de uma situação autoritária que ficaria oculta por trás de um véu de normalidade legal e constitucional.
Nesse sentido, não é estranho que não falemos sobre os mortos no genocídio da pandemia de covid-19 e tantos outros. A Teoria do Medalhão, no nosso tecido social, demonstra essa possibilidade de indiferença em relação aos altos índices de exclusão, morte e violência. Mostra também como, por meio de hibridismos paradoxais, podemos continuar fazendo política “sem infringir as regras e obrigações capitais. Podendo pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma ideia especial a esses vocábulos”[7].
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