Apesar do alerta muito bem escrito pela colunista da PB Helga Almeida,[1] os argentinos elegeram, no dia 19 de novembro, o Sr. Javier Milei para a Presidência da República do seu país. Durante a campanha, vi uma citação atribuída a Gramsci com o retrato do candidato segurando um porrete. A citação é: “O velho mundo morre. O novo tarda a aparecer. E neste claro-escuro, surgem os monstros”.
O que significa essa mensagem? Milei é um monstro? Seria porque ele representa uma mistura de velho e novo? Seria ele o produto de uma crise hegemônica de modelos políticos-econômicos? Ou seria apenas o sintoma “mórbido” de mudanças tectônicas não detectáveis no momento?
Mariana Moyano,[2] jornalista especializada em midiatização da política, apresentou dados indicando que o presidente eleito foi o economista mais consultado em 2018 por programas de rádio e TV na Argentina. Em 2023, ele realizou 235 entrevistas e teve mais de 57 horas de aparição pública na TV (ou seja, mais de uma hora por semana durante um ano inteiro). Nenhum outro personagem político argentino recente chegou próximo de tamanha exposição midiática. Isto é talvez Milei fosse outsider para o sistema político tradicional, mas nunca o foi para a esfera da comunicação política.
Seu histrionismo e “exotismo” também não são novidades. Tampouco é novo o seu personagem falsamente disruptivo, fartamente utilizado para angariar votos dos jovens e das pessoas desencantadas com possíveis mudanças de suas vidas pela via político-eleitoral. Silvio Berlusconi já fazia isso no início da década de 1990, assim como o comediante Giuseppe Grillo, que criou o Movimento 5 Estrelas, que se transformou, do dia para a noite, no terceiro maior partido da Itália. Donald Trump também saltou da tela televisiva para a presidência dos Estados Unidos. Além deles, o cronista de TV Éric Zemmour, na França, e o próprio Zelensky, que saiu do picadeiro para a Presidência da Ucrânia. Foi também na função de animador televisivo que Milei aprimorou a retórica de “contra tudo e todos”, convocando os argentinos a “chutar o balde” contra as instituições políticas e econômicas — e até contra o Papa Francisco. As suas performances conquistaram o apoio de uma massa jovem, deslocada, desempregada e sem perspectivas na Argentina.
Muitos atribuem às queimas de máscaras no Obelisco de Buenos Aires, no fim de 2020, durante a pandemia da covid-19, um marco no crescimento de Milei no cenário político. A extrema direita, inclusive com a participação de Eduardo Bolsonaro, denunciou a quarentena como “infectadura” e defendia o negacionismo climático e o pânico moral com relação à educação sexual nas escolas. Claro que o impacto ideológico construído durante a pandemia e as tendências de moralização apoiada em um discurso ultraconservador são importantes. Todavia, há uma explicação de mais longo prazo que parece ter pesado mais para o eleitorado. A economia argentina está em estagnação desde 2011–2012, que se converteu em recessão e crise aberta em 2018. Ao longo de um extenso processo inflacionário, o poder aquisitivo dos assalariados argentinos sofreu uma diminuição de 25% entre dezembro de 2017 e 2023, sendo essa redução ainda mais marcante entre os trabalhadores informais. Apesar de o ponto mais crítico da queda ter sido registrado em 2018, durante o governo Macri, a administração peronista de Alberto Fernández prosseguiu em tendência descendente e agravou a brecha entre os trabalhadores formais e informais, diferença que se tornou ainda mais evidente a partir da pandemia.
Como assegura um informe da Central dos Trabalhadores da Argentina (CTA), entre 2016 e 2022, a transferência de rendimento do trabalho ao capital aumentou para US$ 87 milhões. Entre 2021 e 2022, essa transferência se manteve, apesar de o governo ser de uma coalização nacional e popular. Assim, não se poderia esperar outra coisa além da frustração e da cólera de amplas franjas do eleitorado ante a essa dolorosa realidade econômica.
O que seduziu o eleitorado não foi o discurso disparatado e cheio de absurdos (por exemplo, de que a Argentina do início do século 20 era o país mais rico do mundo). Milei ganhou a eleição porque vociferava a necessidade de pôr fim a uma situação intolerável que havia condenado a população à degradação social.
O resultado não poderia ser diferente: tinha chegado o momento do triunfo da antipolítica. Ecoaram magicamente na população argentina os discursos de Milei sobre a identificação da “casta” e do Estado como agentes predatórios, ocultando o papel das classes dominantes como agentes da exploração coletiva. Acertaram em cheio a exaltação do hiperindividualismo e seu correlato, o repúdio das estratégias de ação coletiva e de organização das classes, territoriais e laborais, confiando na “salvação” individual e condenando quem protestava nos protestos coletivos. Venceu retoricamente a irracional exaltação de um hábil demagogo patrocinado pelos capitais mais concentrados.
Como parte da “novidade retórica” do eleito, o ideal “utópico-regressivo” que mistifica falsamente o retorno a um passado glorioso da Argentina entre 1860 e 1930, quando o país contava apenas com 4 ou 5 milhões de habitantes, e quando a velha oligarquia pampeana governava o território. Assim, a nova política é, em última instância, a entrega do controle das divisas do país direta e “anarquicamente” nas mãos da classe agroexportadora, descendente da oligarquia aristocrata do século 19. Para além da retórica, o projeto de Milei é a austeridade para os pobres, a anarcomercantilização de tudo, inclusive de órgãos humanos, o desmonte das políticas de seguridade social para a saúde e a velhice e a privatização definitiva do que foi reestatizado pelo governo de Fernández.
De fato, para além da retórica, nada de novo no horizonte argentino. Essa “nova política” é quase a mesma do ministro da economia Martinez de Hoz, durante a ditadura militar entre 1976 e 1981; a mesma de Domingo Cavallo, durante o governo peronista de Carlos Menem, entre 1991 e 1996 e do governo radical (União Cívica Radical — UCR) de Fernando de la Rúa em 2001; e a mesma de Luis Caputo, ex-ministro de Finanças e ex-presidente do Banco Central do presidente Mauricio Macri, entre 2015 e 2018. A receita é conhecida: cortes violentos de gastos públicos com Educação, Saúde e Infraestrutura; aumento da tributação sobre os mais pobres e classes médias; e um olho atento aos recursos a serem explorados na megarreserva de gás e de petróleo de Vaca Muerta. Os resultados também são conhecidos: essa mesmice sempre causou o aumento da miséria da maioria da população, a falência de dezenas de empresas pequenas e médias e a tutelagem e o endividamento contínuo e crescente do FMI, além da tendência à dolarização da economia.
Nessa eleição o sistema de partidos foi implodido, mas, no governo, prepara-se um desfile bem conhecido de velhos homens novos. Atilío Boron[3] diz que os eleitores votaram em quem mais insultava as antigas lideranças argentinas, como Hipólito Yrigoyen e Raúl Alfonsín. Tanto as forças da UCR como a do peronismo entraram em uma crise de proporções inéditas. Ambas (UCR e peronistas) não conseguiram se organizar nacionalmente e ficaram fragmentadas localmente nas províncias sem qualquer estratégia ou liderança e dispostas a negociar, com qualquer candidato, os próprios votos.
Boa parte das organizações sociais e forças partidárias está muito debilitada e sem legitimidade. Provavelmente, a Argentina conhecerá uma grande reorganização do sistema partidário, quase intocado há 40 anos, desde o fim da ditadura militar, em 1983.
No entanto, temos de lembrar que Milei se elegeu com o apoio, indispensável, de Macri e de Patricia Bullrich — e esse apoio só aconteceu depois de um acordo envolvendo a divisão de funções e cargos dentro do novo governo. Tanto é que esse mesmo Luis Caputo do Macri é o nome mais cotado para ser ministro da Economia de Milei!
Da perspectiva da governabilidade, o presidente está isolado, pois não pode contar com o apoio dos 23 governadores provinciais. No Congresso, tem apenas entre 11% e 13% dos assentos, contando com apenas 35 deputados e 8 senadores num Congresso Nacional de 257 deputados e 72 senadores. Resta saber se esse apoio de Macri e a fragmentação política de um sistema político em frangalhos resultarão em possíveis apoios.
Uma força que parece sustentar Javier Milei está na figura da vice-presidenta Victoria Villaruel, uma notória defensora da ditadura militar, familiar de torturadores e fã do ditador Videla. Patricia, ex-ministra da Segurança de Macri, foi confirmada na mesma pasta por Milei. Tornou-se conhecida como defensora da chamada “doutrina Chocobar”,[4] equivalente argentino do “excludente de ilicitude” do ex-presidente Bolsonaro para isentar de punição policiais que cometerem excessos durante operações de lei e ordem. Assim, parece que a tal da liberdade tão defendida por Milei é sinônima de defesa dos interesses oligárquicos. Essa liberdade do presidente autorreferenciado como anarcocapitalista é irmã gêmea da brutalidade, da violência e da repressão. Talvez o lado monstruoso do eleitoi seja justamente a promoção de uma liberdade que promova morte e destruição. Nada de novo nos horizontes político, econômico e social de um país capturado novamente pela morbidez das velhas oligarquias. Sem dúvida, Milei representa, sintomaticamente, essa morbidez.
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