ArtigoCiência Política

Arquipélagos sob tensão

José Mário Wanderley Gomes Neto
é doutor em Ciência Política, mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e docente da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna "Ciência Política" da PB.
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José Mário Wanderley Gomes Neto
é doutor em Ciência Política, mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e docente da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna "Ciência Política" da PB.

Na esfera política, legitimidade e, principalmente, confiança são pressupostos lógicos para construção de ações coletivas, em especial quanto às decisões colegiadas e ao exercício delegado de poder, não sendo diferente para o Poder Judiciário. Já foi destacado aqui o protagonismo individual dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), com “ilhas” decisórias individuais e/ou frágeis blocos colegiados e os riscos deste comportamento para a institucionalidade e para regular o funcionamento do tribunal. Uma face deste fenômeno, por outro lado, permanece oculta: a intensa concentração de poder na figura do ministro-presidente durante o período de recesso e férias forenses.

Segundo o Regimento Interno do STF, compete ao ministro-presidente a apreciação de “questões urgentes” (art. 13, VIII), nos períodos de recesso e nas férias coletivas dos ministros (janeiro e julho). Esta regra amplia o poder decisório de quem esteja no exercício da função (presidente ou vice-presidente), permitindo-lhe conhecer e decidir as mais diversas questões, bem como concentrando todas as resoluções numa única pessoa, em atividade judicial tacitamente delegada por seus pares, no que outrora denominamos “centro do arquipélago” (Gomes Neto e Lima, “Das 11 ilhas ao centro do arquipélago: os superpoderes do Presidente do STF durante o recesso judicial e férias”, RBPP, 2018).

Trata-se de situação considerada corriqueira pelos juristas e pelos próprios ministros, cuja finalidade é manter o funcionamento da Corte durante os períodos excepcionais, sem solução de continuidade da jurisdição constitucional. Diante de uma demanda apresentada nesse período, caberia ao ministro-presidente do STF uma das seguintes estratégias: 1) reconhecer a urgência (situação menos frequente), indeferindo ou deferindo o pedido; 2) não reconhecer a urgência de decidir; 3) não se manifestar sobre a urgência, deixando expressamente para o ministro relator decidir; 4) silenciar-se até o fim do período e deixar implicitamente a questão para o relator decidir.

Durante décadas, os sucessivos ministros-presidentes exerceram esta notável e temporária concentração de poder decisório delegado, sem contestação pública por seus pares – que, aparentemente, confiaram na prudência segundo a qual tais poderes individuais seriam exercidos durante a ausência deles.

Entretanto, numa situação inédita, os ministros Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski renunciaram de forma expressa ao gozo dos períodos de recesso e férias forenses, mediante ação conjunta (externada em pronunciamentos individuais), conservando a jurisdição sobre os processos de sua relatoria e, consequentemente, evitando que o ministro-presidente Luiz Fux viesse a decidir qualquer questão neles no período excepcional.

A recém-iniciada gestão do ministro Fux sobre o STF (e sobre todo o Judiciário) é posta tacitamente sob voto de desconfiança por seus pares, num gesto que antecipa aos outros membros da Corte (e ao público em geral) a percepção do risco da atuação individual concentrada da Presidência vir a contrariar diretamente suas preferências individuais (políticas, sociais, econômicas, etc.) e produzir indesejados efeitos concretos imediatos durante os períodos de recesso e de férias forenses. Como esta mudança de trajetória afetará a dinâmica das decisões (individuais ou coletivas) do Tribunal é algo a ser apreciado nos próximos capítulos desta história.

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