Artigo

As ameaças ao sistema de comissões da Câmara

Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Os últimos seis meses têm sido atribulados no noticiário político. Desde o tenso processo eleitoral até o tenebroso 8 de janeiro, os editores de jornais foram colocados no difícil papel de escolher noticiar os eventos na seção de política ou no caderno policial. A democracia deve ser defendida por todas as instâncias cabíveis nos seus símbolos e espaços, que foram brutalmente ameaçados por ameaças golpistas, como também precisa ser observada nos pequenos processos, os quais têm sido cada vez mais negligenciados na Câmara dos Deputados. 

Desde o início de seu primeiro mandato, Arthur Lira já tinha feito movimentos para aumentar a discricionaridade na distribuição interna dos trabalhos, com a falta de critério na formação dos grupos de trabalho em substituição às comissões especiais, a diminuição dos instrumentos de atuação da minoria no Plenário e a adoção irrestrita de sessões remotas. A ameaça agora é ao sistema de comissões permanentes.

Apesar de pouco se falar sobre o tema, o sistema de comissões é antigo no parlamento brasileiro e tem papel fundamental, a despeito de gozar de menor visibilidade midiática. Cabe ainda observar que, como regra, os projetos são deliberados somente nas comissões. Os projetos vão ao Plenário somente em caráter de exceção (projetos de código, de iniciativa popular, de iniciativa de comissão, relativos a matéria que não possa ser objeto de delegação, oriundos do Plenário do Senado, em regime de urgência ou que tenham recebido pareceres divergentes nas comissões). 

Além de deliberar e votar os projetos temáticos, as comissões podem, ainda, convocar ministros de Estado para prestar esclarecimentos ou realizar pedidos escritos de informação para estes atores. Atos de fiscalização e controle do Executivo, em geral, são atribuições das comissões.

Os temas que englobam o sistema de comissões variaram bastante desde o primeiro regimento e os diferentes períodos históricos do Brasil desde os tempos do Império. Em 1826 havia, por exemplo, a “Commissão da Colonisação, Cathequese e Civilização dos Índios”; em 1832, a “Commissão dos Meios e Modos para a Lenta Extincção da Escravatura” e a “Commissão dos Negocios Ecclesiasticos”. Uma característica, no entanto, muda pouco de 1826 até 1991: o número de comissões flutua entre 12 e 16. O atual regimento (1989) inaugurou o sistema de comissões pós-constituinte com 13 temas, mas subsequentes modificações de 1991 até 2016 fizeram com que este número chegasse a 25.

A impossibilidade de ter número suficiente de parlamentares para tantas arenas estimulou a criação de duas “categorias” de comissões: aquelas que o parlamentar só pode ocupar assento de forma exclusiva e aquelas do “time B”. Isso aconteceu porque as comissões se reúnem em três manhãs da semana – e o tempo dos parlamentares é o recurso mais escasso do parlamento.

Circulam, agora, boatos e especulações de que virá a ocorrer um novo aumento no número de comissões, que pode chegar a 30. As negociações em torno da eleição para a mesa diretora levaram Lira a se sentir confortável com esta possibilidade e falar sobre o tema de forma aberta.

Para evitar represálias, é possível que o presidente da Câmara escolha temas populares e sobre os quais é indiscutível a necessidade de políticas públicas imediatas, como uma Comissão dos Povos Indígenas. A questão é que a guetificação desta questão numa comissão pequena e com pouco prestígio talvez não seja a melhor forma de incluí-la na agenda pública.

Ocorre que uma regra regimental, criada quando o sistema de comissões tinha 13 arenas, estabelece que projetos que sejam objeto de mais do que três comissões permanentes precisam ser encaminhados a uma comissão temporária específica para esse projeto.

Pensemos num exemplo de um Projeto de Lei (PL) que trate da saúde de mulheres indígenas. Num sistema que tenha comissões da Mulher, de Seguridade Social (como é o atual) de Povos Originários e da Saúde (caso sejam criadas), esse PL não passaria por comissões permanentes e voltaria para a mesa de Lira, que teria discricionariedade de quando formar essa comissão temporária. Em alguns casos, Lira escolhe inclusive formar um Grupo de Trabalho (GT), para o qual não só pode escolher quando formar como também selecionar os membros, sem a proporcionalidade partidária que rege todos os outros espaços de deliberação interna da Casa.

É preciso resgatar os instrumentos de atuação de minoria e de proporcionalidade partidária dentro da Câmara dos Deputados para assegurar a democracia da Casa. É preciso democratizar os processos internos dos partidos políticos e não permitir o movimento contrário: que a falta de democracia interna da maioria dos partidos contagie a arena democrática por excelência que deveria ser o Congresso Nacional. Enquanto isso não acontecer, não será surpresa que a última fase do processo legislativo seja no Judiciário.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.