O dia 23 de agosto foi, de acordo com a Unesco, o dia internacional para recordar o comércio e a abolição de milhares de pessoas africanas e seus descendentes ao redor do globo. No dia 20 de novembro, no Brasil, celebraremos o que chamamos de “Dia da Consciência Negra”. A data marca a morte de Zumbi dos Palmares, uma das maiores figuras que retrata a luta pela liberdade de populações escravizadas nas Américas. Não podemos esquecer-nos de que mais no início do ano, em 13 de maio, celebramos o Dia da Abolição da Escravatura. Trata-se de um dia para celebrar o fim do longo processo de escravidão legal no Brasil. Estes três dias são apenas algumas das datas do nosso calendário nas quais marcamos em nossa memória períodos para tratarmos de uma reflexão social necessária – que, nos últimos anos, tem se mostrado ainda mais urgente.
Tratamos de uma história nacional e internacional não tão distante, mas alguns – e, dentre eles, o atual presidente da Fundação do Zumbi dos Palmares – ainda insistem em apresentá-la como um passado remoto, “finalizado”, e que tem pouca influência na nossa atual realidade. Dentro desta conjuntura, é necessário sempre lembrar e esclarecer que entre os anos 1550 e 1850, de cada 100 indivíduos desembarcados no Brasil, 86 eram africanos escravizados. A história africana, a história de pessoas africanas e a história de seus descendentes no Brasil são, há muitos anos, ignoradas.
Nada neste âmbito era tratado para além da menção à mão de obra escrava. Falar de trabalho escravo dentro do contexto brasileiro não costuma ser equivalente a falar de pessoas e suas vivências, mas, sim, refletir sobre um traço da economia colonial, imperial e do início da história do Brasil como nação independente. O País se formou e se estruturou com base no trabalho de pessoas não livres e dentro de condições de trabalho de muita violência. Contudo, a escravidão não foi tratada como uma informação relacionada à condição de quem vivia escravizado e, consequentemente, abordada como uma categoria de status social. O status da pessoa não livre foi compreendido como um dado ontológico, e não situacional. O escravo não é uma pessoa, mas o escravizado o é.
O fato de não ser possível enxergar uma identidade por trás da história das pessoas escravizadas fez com que um mito se criasse nos estudos sobre África, africanos e seus descendentes. Acreditava-se que não se poderia falar de pessoas e de suas narrativas históricas e biográficas por falta de documentos que trouxessem estas informações. Dentro desta realidade, o projeto Freedom Narratives, criado por mim e pelo professor Paul Lovejoy, espera trazer um novo olhar não só para esta discussão acadêmica, como também, principalmente, para o desenvolvimento deste discurso na sociedade. O projeto, desenvolvido a partir de financiamentos internacionais e com suporte da York University (Canadá) e do King’s College London (Reino Unido), conta com pesquisadores ao redor do mundo, entre eles, brasileiros.
Seu objetivo é criar um banco de dados com narrativas biográficas das pessoas que nasceram entre os séculos 16 e 19, na era da escravidão transatlântica. O projeto deseja apresentar as pessoas invisibilizadas por denominações genéricas, tais como “mão de obra”, “escravos” e “carga de pessoas”, e falar sobre quem são aqueles por trás dos grandes números que delinearam a história do mundo no período.
Apesar da impossibilidade de contar a história individual dos 12 milhões de africanos escravizados que embarcaram na África durante todo esse período, a verdade é que há muito mais informações sobre indivíduos do que se imaginava. Ao criarmos um banco de dados digital para ser acessado por pesquisadores e pelo público em geral, pretendemos possibilitar a busca por identidades há muito ignoradas. Ao buscarmos compreender estas vivências, não só acreditamos que elas possam ser contadas, como também nos contrapomos à parcela da sociedade que há muito acredita que essas histórias de vida não são relevantes.
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