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As famílias que não cabem nos cortes do TikTok

Graziella Testa e Luiz Amorim
Graziella Testa é professora na Fundação Getulio Vargas (FGV-EPPG), consultora política e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB. Luiz Amorim é estudante de graduação em Administração Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV-EPPG) e bolsista de iniciação científica CNPq na área de Estudos Legislativos.
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Graziella Testa e Luiz Amorim
Graziella Testa é professora na Fundação Getulio Vargas (FGV-EPPG), consultora política e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB. Luiz Amorim é estudante de graduação em Administração Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV-EPPG) e bolsista de iniciação científica CNPq na área de Estudos Legislativos.

O ano era 2007. Pela primeira vez, a Câmara dos Deputados contava com um parlamentar abertamente homossexual. Como nada é simples de explicar no Brasil, o deputado foi o quarto mais votado e eleito pelo Partido da República, que viria a se chamar Partido Liberal, o mesmo que lançou a candidatura de Jair Bolsonaro em 2022. Já no primeiro ano de mandato, Clodovil Hernandes (PR/SP) apresentou o Projeto de Lei (PL) 580/2007, que estabelecia o “contrato civil de união homoafetiva, o qual buscava “atender à reivindicação dos grupos homossexuais com vistas a integrá-los no ordenamento jurídico e caminhar para a eliminação de preconceitos em razão da orientação sexual”. Contudo, por alguma ironia, no Brasil de 16 anos atrás, uma discussão como essa não poderia ser levada a sério — e não seguiu adiante. Na verdade, no ano de 2009, a contraponto de Clodovil, foi apresentado o PL 5167/2009, que estabelecia que nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo poderia se equiparar ao casamento ou à entidade familiar. Na sua justificativa, os autores Capitão Assumção (PSB/ES) e Paes de Lira (PTC/SP) falam sobre “O Propósito Básico de Deus para a Família está descrito na Bíblia […]. Esse plano é claro. Um homem ligado a uma mulher.

Diante da inação do Legislativo e da flagrante inconstitucionalidade do tema, em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) equipara as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres. Nesse meio tempo, uma constante: o vácuo legislativo do Parlamento ante à comunidade LGBTQIA+ [usamos aqui terminologia do Ministério dos Direitos Humanos]. Até que, no ano de 2013, o deputado Marco Feliciano (PSC/SP) assume a presidência da Comissão de Direitos Humanos, após um eleição tensa fruto de uma reunião fechada da comissão. A comissão, que tinha sido um espaço de direitos individuais, passa então a ser presidida por um deputado que, dentre outros posicionamentos, se colocava abertamente contra o casamento entre homossexuais e a adoção de crianças por casais do mesmo gênero. A estratégia de grupos conservadores que até então buscavam evitar que o status quo fosse mudado, passa a ser a de ativamente mudar o estado das coisas para retirar direitos já presentes no sistema jurídico.

Enquando isso, os projetos antagônicos em relação à união civil de pessoal do mesmo sexo seguem lenta tramitação. O interessante aqui foi o apensamento de projetos tão distintos [na Câmara dos Deputados, projetos que tratem de temas semelhantes tramitam em conjunto, e o nome que dá a isso é apensamento] que passaram a tramitar em conjunto e seguiram na gaveta até que a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família pautasse o tema relatado pelo deputado Pastor Eurico (PL/PE). O parecer favorável à restrição da união homoafetiva é, então, aprovado na comissão. Agora, segue para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC). Seria uma irresponsabilidade se a CCJC não opinasse pela inconstitucionalidade de uma matéria que nem sequer deveria estar tramitando como PL após a decisão do Supremo. Mesmo que o fizesse, a matéria precisaria ir ao Plenário, ser aprovada no Senado e sancionada pelo presidente. Depois de tudo isso, poderia ser ainda derrubada pelo STF. Nenhum dos envolvidos tem qualquer perspectiva que isso vá adiante.  

Então, por que o projeto foi colocado em pauta somente neste início de 57° Legislatura? Por que agora? Estamos a um ano das próximas eleições municipais. No Brasil de 2023, mais precisamente em 10 de outubro, quando aconteceu a fatídica votação na comissão, a era dos cortes prospera. Nela, as falas simplistas e ousadas valem mais que o mérito das matérias. As discussões no Congresso se transformam em diálogos unilaterais, mas contam com um vasto público intensificado pelos algoritmos das redes sociais. Esses breves momentos de fama são almejados pelos parlamentares na busca por visibilidade, sendo as pautas sensíveis munição para essas pessoas. A um ano das eleições, esses breves momentos de visibilidade valem ouro.

Mesmo sabendo de tudo isso, o que mais choca é a audácia e a abertura da Câmara dos Deputados à promoção desse triste espetáculo, um show distante das mais de 80 mil famílias que tiveram a própria existência legitimada após a decisão do STF de 2011 e das outras milhares que ainda estão por vir. Se esses são os primeiros sinais do processo eleitoral de 2024, podemos esperar novas discussões inócuas em que os inúmeros problemas reais são deixados de lado. As famílias não cabem nos cortes do TikTok.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.

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