ArtigoCiência Política

Baixa representação

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Em 19 de novembro de 1863, em plena Guerra de Secessão nos Estados Unidos – conflito que se deu, em grande medida, por discordâncias entre os Estados do Norte e do Sul acerca da escravização de pessoas negras –, Abraham Lincoln disse em seu famoso discurso de Gettysburg que a democracia seria o “governo do povo, pelo povo e para o povo”.

O debate sobre a necessidade de ampla inclusão do povo no regime democrático e as fórmulas de fazê-lo vem atravessando séculos, transformando-se em uma grande questão para os pensadores da democracia representativa. Stuart Mill, por exemplo, vai dizer que o governo representativo significa que o povo inteiro, ou pelo menos grande parte dele, exercite, por intermédio de deputados periodicamente eleitos, o poder supremo. Já Iris Young, autora contemporânea, avança no debate nos alertando que a sociedade é composta por pessoas com diversas posições sociais e, por conseguinte, com diferentes experiências, histórias e compreensões. Por isso, o corpo representativo deveria ser constituído das diversas perspectivas sociais.

Pensando o caso brasileiro, a realidade parece se afastar bastante da teoria. Em 2018, 85% foram homens, e 75,7%, pessoas brancas – e apenas uma deputada era indígena. Em relação às bancadas informais, a maior é a empresarial e conta com 196 deputados; a segunda, a dos parentes, com 175 deputados; a terceira, a evangélica, com 85 deputados; e, em quarto lugar, a ruralista, com 77 deputados.

Em um país expressamente heterogêneo, salta aos olhos a grande homogeneidade nas visões de mundo presentes na câmara baixa. Logo a Câmara dos Deputados, a Casa do Povo, aquela que em nosso sistema bicameral se entende como a representante do povo brasileiro – com a   função de realizar debates sobre as áreas econômicas e sociais, como educação, saúde, transporte, habitação –, tem o engajamento da diversidade de grupos deveras comprometidos. A consequência é fatal com desdobramentos no enviesamento das discussões e das decisões políticas pelos mesmos grupos historicamente privilegiados, além da continuidade do ciclo de exclusão das perspectivas políticas das minorias sociais, sendo essas últimas compostas pelas classes que mais precisam da presença do Estado para a manutenção da própria vida.

Entretanto, por que não temos mais representantes do povo na Câmara dos Deputados? Por que o povo não tem votado no próprio povo? 

A questão não é simples e abrange um amplo cálculo envolvendo diversas variáveis que tangenciam desde questões relativas à cultura política da população brasileira, ao avanço da liquefação das identificações classistas trazido pelo neoliberalismo, até campanhas eleitorais cada vez mais caras, tornando a corrida eleitoral difícil para os candidatos que vêm da margem.

Por ora, as soluções paliativas – que podem resultar em algum impacto no panorama problemático do déficit de representação das perspectivas sociais no Brasil – perpassam por ações que já têm sido pensadas, como a obrigatoriedade da presença de um mínimo de 30% de mulheres nas listas de candidaturas de partidos, assim como a obrigatoriedade de que o dinheiro do fundo partidário e do fundo eleitoral seja destinado de forma proporcional às campanhas de candidatos negros. Futuramente, é importante que se pense na tomada de medidas ainda mais arrojadas, como a garantia de cadeiras para parlamentares com certas identidades, o financiamento público exclusivo ou o financiamento misto (público e privado) com limites baixos para doadores, o sistema de listas pré-ordenadas e a regulação firme do marketing digital (disparos em massa e notícias falsas).

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