Artigo

Barbie, Ken e a lei

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Raramente queremos ver ou falar sobre o assunto, mas, queiramos ou não, há uma insistência fenomênica que se impõe e está presente no filme Barbie, quando o Ken é apresentado como vítima amorosa e frágil do matriarcado. Fato que também é observado na entrevista do ex-presidente Jair Bolsonaro reencenando o “homem simples e do povo” e também ecoa na vitória do “anarcocapitalista” Javier Milei nas eleições primárias na Argentina. Tudo isso acaba se refletindo nos ataques de haters às escolas com o assassinato de alunas e professoras.

Esse feixe de fenômenos revela um discurso que me lembra o século XV europeu e o nascimento das teorias da razão de Estado. Buscava-se, então, tornar necessária a criação de um lugar para um príncipe-pai que transcendesse as divisões sociais — e essa transcendência só poderia ser produzia por alguém que encarnasse a masculinidade viril da força e da legitimidade. A existência do próprio povo e a estabilidade social parecem até hoje depender da existência desse lugar mítico.

Por trás dessa urgência e desses fenômenos, há uma verossimilhança: a demanda por lei e ordem. E o que essa demanda repete? A necessidade de retorno de uma lei paterna que se apresenta como fantasia de uma ordem social pacífica e equilibrada. E por que essa demanda seria necessária? Porque os problemas de degradação civilizacional que nos assolam aconteceriam em razão da falência da lei paterna. Uma vez castrado o másculo Ken, estaríamos sob o risco de nos tornarmos uma “Barbielândia”, um mundo ao avesso, onde dominados se tornam dominantes e onde a ordem natural dos corpos e das coisas está corrompida.

Vale lembrar que a governamentalidade repressiva colonialista explorou amplamente o simbolismo da lei do pai branco e saudável para submeter, humilhar e desumanizar os corpos subalternizados, especialmente escravizados e indígenas. Frantz Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas, demonstra como médicos, administradores e ideólogos das colônias produziram um ideal duplo. Primeiro, os “negros” e “árabes” eram infantilizados, associando sua natureza aos estereótipos associados ao gênero feminino e sua necessária manutenção de minoridade política. Segundo, eles foram construídos como seres imorais, principalmente em matéria de sexualidade.

Esse duplo processo de desvirilização e hipervirilização permite produzir uma norma da masculinidade branca que se apresenta como um meio-termo entre dois excessos, uma virtù que se caracteriza por uma temperança razoável, moral e sexual. A emasculação simbólica (ou não) dos homens escravizados ou colonizados tem, então, a dupla vantagem de promover o colonialismo como nobre atividade civilizatória, bem como promover o imaginário da saúde societal por meio dessa figura do pai branco e hetero que precisa ser protegido para garantir a lei, a ordem, a separação e categorização do mundo.

Fanon nos chama a atenção para o fato de que há uma articulação no discurso colonial entre a necessidade de proteção do pai branco e a defesa do próprio “Ocidente”. Isto é, se a figura do pai, mesmo simbolicamente, entra em declínio, é o próprio “Ocidente” que também vai se degenerar. O argumento é que a civilização acaba ruindo quando a lei não é mais respeitada, ou seja, quando se encontra fragilizada a autoridade de quem produz e consegue impor a lei como lócus de diferenciação dos papéis sexuais, laborais e parentais.

Seguindo essa lógica, frente à falência da lei paterna, o pior dos mundos tornar-se-ia possível: a feminilização geral da sociedade e a generalização da sensibilidade fraca e covarde dos colonizados. Assim, o movimento feminista e anticolonialista teria imposto uma ordem da mãe que anuncia a decadência do Ocidente, além da vitória do Oriente e do bárbaro que tem a dupla natureza de infantilidade e brutalidade. Não é por acaso que o ensaio de Renaud Camus intitulado A grande substituição é bibliografia básica tanto da extrema direita como dos que defendem ataques aos imigrantes. Camus argumenta que, com a cumplicidade das elites europeias, há um genocídio da população branca e a substituição desta pelos árabes, berberes e negros.

O uso desse tipo de retórica é muito evidente em algumas lideranças políticas, como Trump, Bolsonaro ou Éric Zemmour, ou em ideólogos como Renaud Camus — mas não somente neles. Assim, o discurso recorrente de austeridade fiscal não nos remeteria a essa fragilidade da lei paterna presente no Estado social? O recurso a medidas excepcionais e fora do parlamento realizadas por Macron, na França, não seria um exemplo dessa defesa do pai branco colonizador? Colocando, inclusive, ordem policial na juventude periférica francesa, vista como perdida em razão da ausência de pais viris? Essa associação de Banco Central feminino e impotente usada por Javier Milei na Argentina também não seria utilizada no discurso que defende uma instituição autônoma das demandas populares e políticas?

Para entender o que relaciona esses fenômenos, é importante adotar ostandpoint of view do feminismo, o qual parte da economia cotidiana como lente fundamental para compreender a violência sofrida por quem sustenta a domesticidade. Fazer empréstimos para sobreviver, calcular a mudança cambial e ver como a renda mensal desaparece não são questões privativas de especialistas “masculinos” das finanças. As pessoas sabem e conhecem os próprios problemas de “economia política”, porque sentem cotidianamente no bolso e também porque desejam (e têm) expectativas. Essas percepções constituem uma dinâmica política.

A domesticidade é onde o dinheiro vira fumaça, e a sensação de injustiça se constrói na avaliação particular da relação entre esforço e consumo. Viver diariamente nesse cálculo de frustração gera uma necessidade de estabilidade monetária e um desejo de explodir a “casta” que impede essa estabilidade. Milei e outros conseguem, então, se comunicarem e traduzir esse imaginário como necessidade de explosão do Banco Central frágil e afeminado, assim como também a necessidade de reerguer uma Argentina ou uma América submetida à degeneração. Para essa gramática política da lei e da ordem, é fundamental a retórica de suposto resgate da lei paterna e sua força simbólica. A insegurança do cotidiano impulsa o discurso sobre a necessidade de proteção a todo custo, a partir de uma retórica reacionária, misógina e patriarcal. Essa insegurança, em parte, é alimentada pela crença de que os movimentos sociais “progressistas” produziram a falência da lei paterna, mas também se soma à ausência de horizontes de mudança e de crença no futuro.

A tradução dessa necessidade de previsibilidade e de enfrentamento do medo tem sido bem traduzida pelo grito autoritário do suposto macho machucado: o coitado do Ken, mal-amado pela todo-poderosa Barbie. Resta a quem acredita na necessidade de transcendência do pai a construção do desconforto e da angústia em organizações sociais que politizem a crise da masculinidade. Afinal, não vivemos na Barbielândia, mas no mundo das divisões social, sexual e internacional do trabalho, onde bailam a expropriação e a exploração sobre nossos corpos subalternizados.

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