Artigo

“Boi de piranha” no banco dos réus

José Mário Wanderley Gomes Neto
é doutor em Ciência Política, mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e docente da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna "Ciência Política" da PB.
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José Mário Wanderley Gomes Neto
é doutor em Ciência Política, mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e docente da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna "Ciência Política" da PB.

“Boi de piranha” é um termo da expressão popular que designa uma cena própria das comitivas que atravessam regiões como o Pantanal: o vaqueiro identifica, entre os animais da boiada, o mais magro, fraco e/ou doente para atravessar na frente rios e cursos d’água, com o objetivo de saber se estes seriam habitados por perigosos cardumes de piranhas. Se não houver, o boi passa em segurança e todos os demais em seguida; se houver, o sacrifício dele garante que a boiada possa passar tranquilamente (tal como mencionado pelo recente ministro), enquanto as piranhas desfrutam o banquete.

Trata-se de uma situação em que um bem de menor valor é sacrificado para que outros bens, supostamente mais valiosos para seu dono, perdurem. Também pode significar o sacrifício (altruísta ou não) de um indivíduo, na tentativa de livrar outro de alguma dificuldade. Um parlamentar leal e disposto a tudo pode ser um importante peão numa estratégia política que entenda bem este conceito.

No ambiente da competência judicial por prerrogativa de função (“foro privilegiado”) exercida pelo Supremo Tribunal Federal, a condenação de um acusado é um evento extremamente raro (apenas 3%). Por exemplo, as condenações decorrentes do “escândalo do mensalão” foram em si um “ponto fora da curva”, resultantes de diversos fatores que pressionaram a Corte em favor daquele resultado. A recente condenação (do parlamentar sacrificado) também está entre esses fatos raros, resultante de circunstâncias específicas deliberadas e a um altíssimo custo institucional.

Uma contínua e sufocante narrativa de conflito, construída por longas séries de provocações (desrespeitosas, intensas e constantes) e por inflamadas reações pessoais e institucionais (muitas vezes indo além dos limites para o exercício dos poderes constitucionalmente delegados), conseguiu, ao mesmo tempo, nutrir grupos de apoiadores que se alimentam de ideias conspiratórias disseminadas em redes sociais e pautar a oposição, ocupada por sua fragmentada sede de justiça, tirando o foco de pontos sensíveis de uma disputa eleitoral.

Sem as consequências negativas do ambiente institucional distorcido do foro privilegiado, não haveria destaque público para o seu nome, tampouco para as ações de qualquer parlamentar (em clara postura de enfrentamento e de desafio às instituições) pautando mídia e debates políticos, em detrimento de temas relevantes como saúde, inflação, juros altos e desemprego, especialmente em se tratando de ano eleitoral. Da mesma forma, não veríamos fortes manifestações “fora dos autos” a justificar excessos e posturas autodefensivas dos julgadores. Tampouco a prerrogativa constitucional da graça ou do indulto seria vergonhosamente utilizada para dar maior continuidade ao ambiente de confronto e à (suposta) narrativa de perseguição política.

Ao sentimento generalizado de impunidade das autoridades políticas (seja qual for o partido ou a sua orientação ideológica) soma-se a contribuição deste privilégio da casta política para a erosão da relação entre os poderes constituídos e os elementos essenciais à democracia.

Esta é a crônica entre o parlamentar “sacrificado” e o uso estratégico de seu privilégio de foro.

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