Em algum dia distante de janeiro, Jair Messias Bolsonaro se olhou no espelho e viu o próprio Brasil personificado, cingido de verde e amarelo. Desde então, a figura do presidente brasileiro passou a espelhar um projeto de redenção para o Brasil com feições religiosas e messiânicas de “Nova Jerusalém”. Se prestarmos atenção nos argumentos dos defensores do bolsonarismo, podemos observar a recorrente referência a uma civilização cristã ocidental imaginária. Busca-se, por meio de uma “revolução reacionária”, regenerar uma nação supostamente em perigo diante de uma ofensiva cultural contra os “valores tradicionais”.
Neste sentido, o bolsonarismo avalia que as instituições brasileiras já estão moralmente degeneradas e que se precisa inverter a racionalidade burocrática dessas instituições à luz do “evangelho”. Para que essa inversão aconteça, é necessário mobilizar, através de construções imaginárias, o significado de o que é ser brasileiro, assim como o lugar que o Brasil ocupa tanto na ordem internacional como no cotidiano das pessoas. É preciso que se mobilize, em razão de um bem maior, a necessidade de ação e de sacrifício de cada um e da comunidade nacional para que se alcance a redenção. Essa redenção pode passar pela morte de um ou outro por Covid, ou por uma perda material ou de status na sociedade brasileira.
O que aqui está em questão é uma avaliação da brasilidade. Seria o Brasil um país do futuro que deve buscar a qualquer custo se integrar à modernidade, ou seria um país mais virtuoso exatamente porque escolheu para si outro destino ligado ao Tradicionalismo? Benjamin Teitelbaum*, em recente entrevista, nos diz que Steve Bannon, mentor de Donald Trump e de Victor Órban, vê no Brasil o melhor lugar para servir de experimento para a direita global; pelo fato do país ter chegado atrasado na modernidade, teria preservado as virtudes pré-modernas necessárias para ressuscitar o projeto civilizatório do Ocidente cristão.
Em 1988 foi lançada no Brasil a obra O Espelho de Próspero de Richard Morse. Partindo da clássica e conhecida interpretação de A Tempestade de Shakespeare, Morse argumentava que a singularidade da Ibero-América poderia servir de saídas terapêutica e estética à decadência criada pela Anglo-América. Entre a barbárie simbolizada pelo personagem Calibã (representando o iberismo) e a civilização encarnada por Ariel (o anglosaxismo), Morse escolheu o iberismo como a forma de vida mais saudável para viver no mundo moderno decadente, saturado pelos excessos da cultura Anglo-Saxã. Soa estranho que ele chegue no mesmo diagnóstico de Bannon, por motivos completamente opostos.
Não raro o bolsonarismo é interpretado como inevitável resultante de uma modernidade incompleta, típica de um país periférico. O Brasil seria um país que produz jagunços, coronéis e milicianos; uma nação que, para consolidar suas instituições, precisa se alicerçar na violência e na eugenia. Que venha o progresso, mas por meio de nossa tradição nacional: a barbárie.
Afinal, a nossa barbárie é uma virtude redentora ou um signo do atraso? O problema é que essas reflexões ficam enredadas numa suposta oposição entre Calibã e Ariel, sem que se pense nesta dupla pelos prismas de sua complementaridade e interdependência.
Machado de Assis, no conto “O espelho – Esboço de uma nova teoria da alma humana (1882), trata do tema da constituição e da desconstituição da identidade do brasileiro diante do espelho. Jacobina, personagem central do conto, precisa utilizar o uniforme de Alferes do Exército como um suporte ortopédico de sua afirmação identitária, para que sua imagem não desapareça diante do espelho trazido da Corte de João VI.
Machado expõe a necessidade quase patológica que o brasileiro tem de confirmar sua identidade e suas fragilidades narcísicas. Através de um espelho, o brasileiro busca afirmar uma identidade unívoca e imaginária, ocultar o medo do desencanto, e refugiar-se em alguma imagem que lhe outorgue unidade e futuro. Os “jacobinistas” precisam sustentar essas operações sustentando-se em convicções. Sem elas, todo o processo de construção e desconstrução de seu imaginário em relação a si e o seu valor social desaba. Sem a imagem no espelho, sua alma fica exposta e, o que é pior, o seu lugar no chá da Corte também. Os que ameaçam derrubar essa imagem devem ser destruídos: diante da possibilidade de redenção, qualquer outra consideração é supérflua.
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