A discussão sobre a terceira via no Brasil tem sido o foco dos debates e ocupa boa parte do noticiário político brasileiro. O termo terceira via foi primeiro utilizado por Anthony Giddens, no contexto britânico, para descrever uma nova ideologia que fugisse da dicotomia neoliberais versus sociais-democratas. Na verdade, a terceira via, de uma certa forma, transcenderia essas tradições políticas e seria mais adequada ao contexto de globalização e complexificação das demandas políticas da população.
Ao discutir a formulação de Giddens e tentar aplicá-la aos contextos espanhol e norte-americano, Vicente Navarro critica a formulação do conceito. E é sobre estas críticas que vamos tratar, para tentar entender o contexto brasileiro e as contradições da suposta terceira via. Navarro começa explicando que Giddens, ao descrever as tradições políticas preexistentes – a social-democracia, o conservadorismo e o liberalismo –, cria inimigos contra os quais é fácil lutar. Em outras palavras, o autor britânico faz uma descrição pouco fiel e que fala somente dos aspectos negativos das tradições políticas em questão.
Um dos exemplos colocados por Navarro da pouca acurácia de Giddens está na percepção de que “a social-democracia tem se caracterizado por apoiar-se no protecionismo, pela propriedade estatal dos meios de produção, pelo keynesianismo, pelo gerenciamento de procura, por papéis restritos para os mercados e pelo controle estatal da economia.” Ora, se isso foi verdade para alguns dos países que se assumiram sociais-democratas, Suécia, Noruega, Dinamarca e Finlândia não adotaram políticas econômicas keynesianas. Até mesmo na Alemanha, que se aproxima um pouco mais desse modelo supostamente universal proposto por Giddens, os partidos conservadores foram os principais responsáveis por expandir o setor estatal, se comparados aos sociais-democratas.
Outra crítica a Giddens está na caracterização da corrente neoliberal. Para Navarro, o erro do inglês foi incluir duas vertentes diversas num mesmo conceito, os liberais e os conservadores. A questão central aqui é que, para Navarro, os partidos conservadores não tiveram grandes preocupações com o livre mercado. Em alguns casos, chega a ser precisamente o contrário. A democracia cristã não tem pretensão de diminuir o tamanho ou as funções do Estado. Ao contrário, os governos conservadores franceses, italianos e alemães se mostraram afeitos a processos de estatização. O que Navarro alega é que a obra de Anthony Giddens tenta vender como novidade na Inglaterra um fenômeno já velho conhecido da Europa continental. Giddens procura um local do espectro político que esteja entre a tradicional dicotomia inglesa trabalhistas/conservadores. O ponto de Navarro é que a clivagem política na Europa ocidental é mais complexa (e interessante!) do que a dicotomia da ilha da rainha.
As semelhanças com o caso brasileiro não são incidentais. Falar da necessidade da construção de uma terceira via no Brasil seria dizer que é preciso encontrar algo que se localizasse entre o trabalhismo do PT e o conservadorismo “pseudoneoliberal” de Bolsonaro – com o perdão do neologismo. Ocorre que nosso espectro político partidário já comporta muitas outras opções além destas duas. Pesquisas já mostraram extensivamente que é possível localizar os partidos brasileiros no cenário político direita/esquerda. Essas mesmas pesquisas já revelaram que, embora a infidelidade e a migração partidária serem uma realidade no nosso sistema político, só muito raramente as mudanças ocorrem para outro extremo do espectro político. Isto é, parlamentares tendem a migrar para partidos com ideologias semelhantes às daquele que abandonam.
O Brasil não é um sistema bipartidário que carece da representação de outros setores e ideias. Nosso sistema multipartidário é capaz de comportar tal demanda. O presidencialismo de coalizão também gera incentivos para que, independentemente de quem seja eleito para a chefia de governo, ele ou ela precise ceder para se adequar às demandas do Congresso, onde são colocadas as demandas de tantas outras correntes do escopo político. Se, portanto, esses diferentes pontos do panorama já estão representados no Parlamento, a exigência por um chefe do Executivo que não seja Lula, nem Bolsonaro parece ser mais um sintoma do personalismo político, cuja essência é ter demandas encarnadas em pessoas. O Brasil não precisa de um candidato que encarne a terceira via, mas sim de um eleitorado que entenda a importância do Congresso Nacional.
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