Neste 30 de setembro, acompanhei pela televisão os 22 minutos de fala de Jair Bolsonaro em um evento na minha cidade natal, Belo Horizonte. Oficialmente, a visita teve dois motivos: o anúncio da privatização do metrô da cidade e o lançamento das obras do Centro Nacional de Vacinas. Chamou atenção que pouco se falou sobre os assuntos que fizeram o presidente viajar 734 quilômetros (saindo de Brasília) e que tanto são de interesse da população da capital. Por outro lado, falou-se sobre Venezuela e Cuba. Também teve a pergunta: “É este socialismo que nós queremos aqui?”, em que o público gritou “A nossa bandeira jamais será vermelha” e o presidente dizendo “Naquela minha cadeira presidencial não tem um comunista, socialista, ladrão sentado nela”.
Bom, nada novo sob o sol da Republiqueta das Bananas. Lembremos da fala de Bolsonaro na Assembleia Geral das Nações Unidas alguns dias atrás (21 de setembro de 2021), em que disse desavergonhadamente, e para todo o mundo, que “O Brasil tem um presidente que acredita em Deus, respeita a Constituição e seus militares, valoriza a família e deve lealdade a seu povo.Isso é muito, é uma sólida base, se levarmos em conta que estávamos à beira do socialismo”.
Com uma desaprovação em seu pico neste setembro de 2021[i]; um país com 14,1 milhões de desempregados[ii]; 19 milhões de pessoas passando fome; 119 milhões em insegurança alimentar (próximo a 56% da população)[iii]; e quase 600 mil mortos pela covid-19, Bolsonaro tem reiteradamente se esquivado de discutir tais temas e suas possíveis soluções.
Ao mesmo tempo, vem novamente utilizando a narrativa ideológica e dos costumes. O objetivo, dentre outros, é manter sua base mobilizada a partir da retórica do medo e das teorias conspiratórias.
Uma dessas conspirações é a do iminente perigo comunista, a tal “ameaça vermelha”. Repetida em incontáveis discursos do presidente, este argumento fantasioso vai sendo introduzido nos conscientes e subconscientes de seus apoiadores, que, por sua vez, internalizam que haveria ali à espreita, bem perto, talvez na esquina, o “perigoso” comunismo, só esperando para dar seu esperto bote. E este estado comunista viria por meio de um golpe – ou pouco a pouco –, trazendo consigo “males tenebrosos”, como os fins da propriedade privada, da família, do cristianismo, da ordem, da soberania da pátria, entre outros variados “horrores”.
Lembremos que usar a alegoria do “fantasma do comunismo” para se justificar ou justificar ações não é algo novo no mundo, tampouco no Brasil. Na verdade, é ciclicamente retomado, para o cansaço dos que têm olhos lúcidos.
Antes do golpe de 64, por exemplo, muito se dizia que o Brasil estaria vivendo um risco de revolução comunista. A justificativa se baseava em sandices como a afirmação de que Jango seria comunista, e suas reformas (Agrária, Habitacional, Bancária, Universitária, etc.) o primeiro passo para o Brasil virar uma “nova Cuba”. Também diziam que os protestos de rua por direitos, protagonizados por trabalhadoras e trabalhadores brasileiros, levariam a um golpe comunista. O que não fazia (e ainda não faz) sentido algum, dado que o movimento comunista brasileiro nunca teve grande força política.
Então, se não há, de fato, um “risco comunista” no Brasil – e possivelmente podemos afirmar o mesmo em relação ao restante dos países democráticos do mundo –, por que cargas d’água lideranças de extrema-direita continuam mobilizando este argumento e criando um clima ultrapassado de Guerra Fria? E mais: por que parte dos brasileiros continua entrando neste “delírio (anti)comunista”?
O pesquisador Rodrigo Patto Sá Motta, autor do livro Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964)[iv], derivado de sua tese de doutorado[v], salienta fatores importantes para pensarmos. Segundo ele, o mote do “perigo vermelho” tem sido utilizado historicamente por grupos conservadores brasileiros para se colocarem contrários às transformações sociais que o País tem passado e, principalmente, para se expressarem contrários às mudanças relativas às hierarquias sociais e de valores [vi]. Isto é, não é que as lideranças conservadoras que gritam “nossa bandeira jamais será vermelha” acreditem que há chance real de uma revolução comunista acontecer. Hoje, o anticomunismo da elite não é objetivamente uma luta contra o comunismo, coisa que imagino que a maioria das pessoas que bradam contrariamente nem saiba o que quer dizer, mas é, na verdade, uma alegoria que concentra a expressão de medo e rechaço de que classes populares e minorias sociais questionem essas hierarquias. Trocando em miúdos, as promessas contemporâneas de extirpação urgente da “ameaça vermelha” demarcam a não aceitação de mudanças infinitamente mais sutis que uma revolução comunista. Estamos falando da rejeição de mudanças trazidas pelas mais suaves sociais-democracias, por exemplo, mais direitos políticos, civis e sociais para pessoas negras, pobres, mulheres, pessoas LGBTQIA+ e pessoas de religiões não cristãs.
É curioso que o próprio Karl Marx, em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, quando relata o modo como o proletariado foi expulso da Assembleia Nacional francesa, em 1848, apenas por vocalizar algumas demandas, descreve: “Toda e qualquer reivindicação da mais elementar reforma financeira burguesa, do mais trivial liberalismo, do mais formal republicanismo, da mais banal democracia é simultaneamente punida como ‘atentado contra a sociedade’ e estigmatizada como ‘socialismo’.”
Enfim, a luta contra o “comunismo” no Brasil é a luta dos conservadores contra a inclusão dos excluídos.
I. Na Pesquisa Ipespe. Avaliação Presidencial. Eleições 2022. Setembro 2021. Divulgada em 30 de setembro de 2021, Bolsonaro aparece com sua maior avaliação de ruim/péssimo (55%) até aqui e a maior desaprovação (64%).
II. https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/09/30/desemprego-fica-em-137percent-em-julho-aponta-ibge.ghtml
III. https://veja.abril.com.br/blog/radar-economico/brasil-volta-ao-mapa-da-fome-e-comeca-a-chegar-ajuda-global/
IV. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: O anticomunismo no Brasil (1917–1964). Coleção Estudos. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
V. MOTTA, Rodrigo Patto Sá; QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Em guarda contra o “perigo vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917-1964).Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.
VI. https://apublica.org/2019/04/1964-o-brasil-nao-estava-a-beira-do-comunismo-diz-historiador/
Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.