Artigo

Caos como método

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Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler e um dos grandes responsáveis por convencer a sociedade alemã a aderir ao projeto nazista, dizia que “uma mentira repetida mil vezes, torna-se verdade”. Foi com esta frase em oposto, “Uma mentira contada mil vezes não vira verdade”, que o Supremo Tribunal Federal (STF) rebateu o discurso do presidente brasileiro acerca de suas reiteradas afirmações de que os ministros do mesmo STF estariam o impedindo de atuar no combate à pandemia da covid-19.

Não é bem uma novidade o uso que Bolsonaro faz deste tipo de “recurso” de desinformação sistemática em seus discursos. As suas falas mais recentes desacreditando vacinas e máscaras na proteção contra o vírus, descredibilizando o sistema eleitoral e o Judiciário, são parte de um repertório que vem sendo construído há muito.

Nos 29 anos de permanência de Bolsonaro na Câmara dos Deputados, foram inúmeras as manifestações contendo todas as espécies de absurdos, sendo estas usadas para gerar repercussão em torno do seu nome e introduzir um ideário de extrema-direita no debate público. Ainda em 1999, por exemplo, em discurso na tribuna da Câmara, ele disse que “a atual constituição garante a intervenção das Forças Armadas para a manutenção da lei e da ordem. Sou a favor, sim, de uma ditadura, de um regime de exceção”. Este é só um exemplo dentre o mar de estapafurdices recheadas de violência e preconceitos que foram jogadas aos quatro ventos.

Alguns apostaram que estas explosões desarrazoadas cessariam quando ele assumisse o cargo mais alto da República – mas, para a surpresa (de alguns), não foi isso que aconteceu. Pelo contrário, o espalhamento de obscenidades se tornou mais metódico, agora com mais agentes participantes e utilizando a infraestrutura das plataformas digitais.

Bolsonaro, assim, forjou uma grande máquina de guerras de informação e cultural em suas mãos.

A notícia boa é que não estamos sozinhos nessa.

Aliás, talvez esta seja a notícia ruim.

Alguns pesquisadores vêm observando que muitos países democráticos têm experimentado níveis crescentes de informações falsas. Os autores Bennett e Livingston (2018) [1] [2] salientam que o espalhamento de desinformação está associado aos esforços de movimentos e partidos de direita radical para mobilizar simpatizantes contra os partidos pertencentes ao centro democrático e contra a grande imprensa. Os objetivos são minar a legitimidade institucional e desestabilizar partidos centrais, governos e eleições.

Neste ponto é bom frisar que, por mais que a impressão geral seja de que o fenômeno da desinformação se dá a partir de eventos isolados, não devemos nos enganar, na verdade ele é construído estrategicamente e se desenha a partir de interrupções intencionais, programadas e sistemáticas dos fluxos de informações confiáveis. A situação fica mais problemática quando inserimos no cálculo as mídias sociais, dado que se encaixam como luva no papel de meios de comunicação com potencial de pulverizar versões opostas à realidade diária.

Mas então algum leitor(a) pode estar aí se preguntando: Por que atores políticos de extrema direita investem no espalhamento de caos social e desordem institucional? Bom, meu caro leitor e leitora, minar e se esforçar para enfraquecer instituições, leis e governos tem como resultante uma desconfiança generalizada em relação às democracias e seus atores. Isso, por sua vez, faz com que parte dos cidadãos, agora desacreditados, optem por confiar exatamente naqueles líderes de extrema direita, aquelas lideranças autoritárias que se dizem “contra tudo o que está aí, tá ok?” e que se coloquem como solução (não-democrática) para todos os problemas da nação.

No caso brasileiro, essa guerra de informações tem caminhado e se consolidado com uma guerra cultural, na qual se tensiona a sociedade em relação a seus valores, símbolos, pensamento, etcSegundo o autor João Cezar de Castro Rocha no livroGuerra cultural e retórica do ódio: crônicas do Brasil, a guerra cultural bolsonarista á o eixo do governo, sendo que esta teria elementos transnacionais, aproximando-se do que faz a alt-right americana e o que faz o Movement de Steve Bannon. Além disso, teria também características próprias como o revanchismo militar, advindas do livro Orvil e da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), e uma retórica de ódio, sistematizada por Olavo de Carvalho.

Isso tudo pode parecer “muito Black Mirror”, mas é a realidade.

O que vemos é que o mundo tem aumentado sua preocupação com as guerras de informação, a ponto de União Européia, em cooperação com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) fundasse o The European Centre of Excellence for Countering Hybrid Threats (Centro Europeu de Excelência para Combater Ameaças Híbridas), na Finlândia.

Post scriptum: E enquanto eu finalizava este texto li a notícia de que Steve Bannon, talvez a maior marqueteiro da extrema-direita do mundo e em quem recaem milhares de denúncias acerca do espalhamento de desinformação em campanhas eleitorais, cooperará com a campanha de reeleição de Jair Bolsonaro. Sinistro.

Notas:

[1] BENNETT, W. Lance; LIVINGSTON, Steven. “The disinformation order: Disruptive communication and the decline of democratic institutions”. European journal of communication, v. 33, nº 2, p. 122-139, 2018.
[2] Agradeço ao grupo de pesquisadoras e pesquisadores que compõe o projeto Observa – Observatório de Conflitos na Internet pelo debate acerca deste artigo e de tantos outros.

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