Artigo

Cem anos de sigilo

Helga de Almeida
é doutora em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e do PPGCP da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Helga de Almeida
é doutora em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e do PPGCP da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Em um podcast no mês de agosto, o presidente desta, ainda, República, quando perguntado sobre dezenas de decretos que estabeleceram sigilo de cem anos sobre informações de seu governo, respondeu “a imprensa começou a perturbar”, e continuou, “eu não devo satisfação a ninguém”[i].

O entendimento de que o maior cargo do executivo “não deve nada a ninguém” parece mesmo estar cristalizado no entendimento da Presidência e pode ser visto nos decretos vindos do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) acerca de diversos assuntos.

Inclusive o próprio presidente já fez piada com isso:

Entre os temas classificados como dignos de sigilo de cem anos estão, por exemplo, as visitas de pastores a Jair Bolsonaro, no Palácio do Planalto. Há indícios de que as visitas trataram de discussão sobre verbas no Ministério da Educação[i]. Também estão as visitas dos filhos de Jair Bolsonaro, Carlos Bolsonaro (vereador/RJ – Republicanos) e Eduardo Bolsonaro (deputado federal/RJ – PL), ao Palácio do Planalto[ii]. A Presidência da República também decretou sigilo no processo interno do Exército contra o general e ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que trata de sua participação em uma motociata ao lado do chefe do executivo em 2021[iv].

Ao longo desses três anos de governo, dezenas de informações sobre episódios que envolvem o governo federal foram classificadas pela Presidência da República e GSI como ultrassecretos e objeto de segredo de cem anos.

Aproveitando-se de brechas na chamada Lei de Acesso à Informação (LAI), Lei nº 12.527, sancionada em 18 de novembro de 2011, que regulamenta “o direito constitucional de acesso dos cidadãos às informações públicas e é aplicável aos três poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios”[v], o governo federal segue jogando fatos para baixo de um tapete que só poderá ser erguido no próximo século. Isso porque a LAI, lei que trouxe grande avanço, no sentido de transparência pública, ao País, apesar de ter descartado a possibilidade de secretismo ilimitado, define, em seu Art. 31, § 1º, que “as informações pessoais, […], relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem: I – terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; […]”[vi]. E é exatamente neste ponto que Bolsonaro se baseia para construir sua interpretação da LAI e justificar a maré de documentos colocados em sigilo. É como ele mesmo afirmou, “não é um decreto ditatorial meu. A lei me garante isso”[vii].

Mas, em uma democracia, o secretismo não deveria se concentrar em documentos pontuais, dado que estamos falando aqui de um sistema de um governo, como ressaltou Abraham Lincoln, em 1863, “do povo, para o povo e pelo povo”? Como o povo pode governar, avaliar seus representantes e examinar se o governo tem sido fiel às suas vontades se informações de interesse público são colocadas a torto e a direito dentro de um baú e trancadas a sete chaves?

Por essas e por outras, autores que avaliam a qualidade das democracias no mundo têm reiteradamente afirmado que o Brasil ainda é uma democracia eleitoral (MAINWARING; SCULLY, 2010[viii]) e não avançou ainda ao patamar de uma democracia de alta qualidade. Isso significa que, em nosso país, até há algum esforço de tornar a democracia durável. No entanto, a qualidade da democracia é baixa; além disso, os processos e a influência política dos cidadãos são ainda bastante debilitados (ALMEIDA, 2017[ix]). É que, para chegar ao patamar de democracia plena, é essencial que cidadãos comuns exerçam um grau relativamente alto de controle sobre seus líderes (DAHL, 1989[x]). Nesse imbróglio é central que haja accountability política, ou seja, é imprescindível que funcionários públicos prestem contas do exercício de suas funções públicas (MAINWARING; WELNA, 2003[xi]).

E aí está a pergunta: é possível a convivência de democracia e secretismo? Certamente, os teóricos da democracia diriam que não.


[i] https://istoe.com.br/em-podcast-bolsonaro-defende-sigilos-de-100-anos-nao-devo-satisfacao-a-ninguem/

[ii] https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/06/16/governo-diz-ao-stf-que-sigilo-de-100-anos-sobre-visita-de-pastores-ao-planalto-e-medida-corriqueira.ghtml

[iii] https://www.poder360.com.br/governo/governo-impoe-100-anos-de-sigilo-a-idas-dos-filhos-de-bolsonaro-ao-planalto/

[iv] https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2022/08/14/interna_politica,1385604/em-100-anos-sabera-os-sigilos-decretados-na-era-jair-bolsonaro.shtml

[v] https://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/servico-de-informacao-ao-cidadao/sobre-a-lei-de-acesso-a-informacao#:~:text=A%20Lei%20n%C2%BA%2012.527%2C%20sancionada,Distrito%20Federal%20e%20dos%20munic%C3%ADpios.

[vi] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12527.htm

[vii] https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2022/08/14/interna_politica,1385604/em-100-anos-sabera-os-sigilos-decretados-na-era-jair-bolsonaro.shtml

[viii] MAINWARING, Scott. SCULLY, Timothy. (2010) Democratic Governance in Latin America: Elevn Lesson from recent experience. In Mainwaring, Scott, and Timothy Scully. Democratic Governance in Latin America. Stanford University Press, 2010.

[ix] ALMEIDA, Helga. Representantes, representados e mídias sociais. Mapeando o mecanismo de agendamento informacional. Tese de Doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, 2017.

[x] DAHL, Robert. (1989) Um Prefácio à Teoria Democrática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

[xi] MAINWARING, Scott; WELNA, Christopher (Ed.). Democratic Accountability in Latin America. OUP Oxford, 2003.


Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.

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