Quando a bancarização e a educação financeira são consideradas os meios suficientes para inclusão, cidadania e democratização financeira no âmbito do Sistema Financeiro Nacional (SFN), temos a evidenciação de um desafio, qual seja o de tratar a bancarização e a educação na lógica da financeirização da economia — e, portanto, de forma pouco vinculada ao efetivo desenvolvimento nacional.
A Constituição Federal brasileira regula a atividade econômica capitalista e o SFN a partir do enfoque, dentre outros, do desenvolvimento nacional, da erradicação da pobreza e da redução de desigualdades. A Carta Magna faz isso em busca da garantia da dignidade da pessoa humana e dos valores do trabalho e da cidadania, sendo essa expressão de um conjunto de direitos do qual decorre a realização plena do ser humano em uma sociedade justa e solidária.[1]
Atualmente, prevalece na agenda regulatória do Banco Central (Bacen) e no SFN a preocupação com a cidadania financeira, sinônimo de inclusão e democratização fundadas em pilares de bancarização e educação. Ambas parecem ser expressões da financeirização da economia nacional e da leitura restritiva dos direitos sociais. A bancarização é o acesso da população a contas, produtos e serviços financeiros, inclusos crédito, pagamentos, poupanças e investimentos; já a educação financeira é a compreensão dessa população sobre a natureza, a qualidade e os riscos desses produtos e serviços. Em suas formas atuais, não parecem afeitas à valorização de justiça distributiva ao tratar desigualmente os desiguais vulneráveis e à defesa da responsabilidade social.[2]
Muito embora tenham benefícios — no caso da bancarização, para prevenção à lavagem de dinheiro (KYC — conheça seu cliente) e recolhimentos de tributos, e, no caso da educação financeira, para maior conscientização dos recursos escassos para o consumo e a poupança —, são pouco efetivas para fomentar o desenvolvimento nacional. Ao se contentarem com cidadania a partir do indiscriminado acesso a produtos e serviços financeiros e da matemática de gestão de recursos, pressupõem padrões de renda suficientes para sobrevivência digna do cidadão e de sua família, inclusa a renda necessária para a moradia, o transporte, a educação e a saúde, o que está longe de ser a realidade nacional.
Toda essa preocupação vem inserida, ainda, em um contexto de consumo e concorrência com forte intervenção no domínio econômico pelo Bacen, proporcionados especialmente por impulso à inovação e redução de barreiras de entrada dos novos potenciais atores no SFN (fintechs e bigtechs), inclusive por meio de imposição de compartilhamento autorizado de dados dos clientes entre os grandes bancos e novos entrantes.[3] Falta, talvez, maior encaixe e mais integração do SFN na formação e na destinação da renda, na garantia da suficiência de recursos para a sobrevivência, no trabalho digno, no combate à precarização do trabalho, nas justiças social e fiscal — ou, até mesmo, no controle adequado da inflação e da taxa cambial. A bancarização e educação financeiras pouco têm a ver com efetividade de exercício de direitos que dependam de renda mínima, de redução corajosa de desigualdades e de incentivo imperativo à concessão de crédito responsável.
Os padrões de consumo que se estabelecem para produtos e serviços financeiros, entre créditos consignados — que abocanham, a taxas “baixas”, parcelas relevantes de aposentadorias, salários e rendimentos —, cartões de crédito (expressão do consumismo desenfreado do american way of life) e novos modos de pagamentos, que cada vez mais capturam os modos de vida e prendem o consumidor em teias de mais amplo consumismo, pouco têm a ver também com a proteção do cidadão e do consumidor constitucionalmente garantida.
Há um desafio, portanto, a se enfrentar, e este vai muito além da retórica da bancarização e da educação financeiras, nas quais o problema se resolve com acesso a produtos e serviços e com educação do ignorante que não consegue lidar com os recursos (escassos) para adimplir as obrigações e poupar mais. É fundamental enfrentar a consolidação desses conceitos, além da sua interpretação e aplicação em outro modo que pondere o grave problema social de uma população dependente do crédito para sobrevivência e sujeita a crédito a juros exorbitantes, por seu histórico negativo de inadimplemento de crédito e sua falta de disponibilidade de garantias; ou seja, um modo que leve às efetivas inclusão, democratização e cidadania, bases para a promoção do desenvolvimento nacional.
1 Nesta linha, José Afonso da Silva há muito reitera a importância de dar à cidadania um sentido operativo a favor da população mais carente, evitando-se a visão de mera retórica política. SILVA, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição, art. 1º, item 4.4 – A Cidadania. São Paulo: Malheiros, 2014, pág. 37.2 Disponível nos relatórios de cidadania financeira e no endereço eletrônico: https://www.bcb.gov.br/cidadaniafinanceira.[3] Agenda BC# — Competitividade — disponível no endereço eletrônico: https://www.bcb.gov.br/acessoinformacao/bchashtag.
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