Artigo

Cisão e expectativa sobre os atores errados

Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Há 30 anos, estive em um show de Djavan no Palace. Fim de semana passado, voltei — desta vez, no Espaço Unimed. A exemplo do que senti com Paulinho da Viola alguns meses atrás, no Sesc Pinheiros, o tempo não parece afetar esses “imortais”. Simplesmente incrível. E lá estava uma plateia que lotou a casa e entoou sucessos.

Em meio à apresentação, lances ideológicos evidentes. Na fala de abertura, um texto lido sob a performance tecnológica do telão, a voz da deputada federal do PSOL e ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara. Ao longo do espetáculo, algumas das imagens transmitidas têm ilustrações à esquerda. Por fim, numa das músicas, Djavan diz que a canção é de 2022, quando o Brasil vivia fase obscurantista. A soma faz o fã se vestir de cientista político. Fui retirado da descontração e fiquei atento à reação de quem estava por perto. Notei desconfortos e muitos aplausos. Nada que ultrapassasse isso onde eu estava. Faz parte e me devolveu ao show. Mas estamos preparados para isso?

Dias atrás, tivemos Madonna em Copacabana. Para alguns, as performances chocaram, revelando ignorância e desconhecimento sobre a rainha do pop. Nos anos 1990, estive num show dela no Morumbi e, ainda jovem, fiquei incomodado. Mas eu sabia onde estava pisando. Todos sabiam? Muitos demoraram a entender. Teve senador conservador que pediu desculpas por ter comparecido, o que reforça o coro: a emenda é pior que o soneto, pois, no palco, não estava a novidade, mas a Madonna de sempre. Impressiona como a direita brada por liberdade e ataca tudo que a contraria em tom esquizofrênico.

As críticas à artista invadiram as redes sociais — e parte da esquerda reagiu resgatando “cenas chocantes” de espetáculos sertanejos que, em massa, se bandearam à extrema direita no Brasil. Percebamos como a cisão vivida é tão tenebrosa que até na arte aceito no MEU o comportamento que massacro no OUTRO, a quem chamo de inimigo apenas por pensar politicamente diferente de mim. Precisamos disso?

O quanto sabemos separar as coisas? O quanto conhecemos quem admiramos e somos capazes de respeitá-los? Djavan é um artista incrível, a despeito de sua ideologia, assim como Madonna é fenomenal. A música sertaneja arrasta multidões e, confesso, senti saudades de Zezé di Camargo e Luciano, bem como resisti ao primeiro ensaiando continência nas fotos de divulgação de show próximo. Em 2002, a campanha da dupla para Lula também me afastou. Por quê?O que esperamos dos nossos ídolos? Não precisamos, por mais que faça parte da arte, depender do posicionamento dessas figuras para apreciarmos o que eles têm de melhor a nos oferecer: arte. Impressiona negativamente o quanto esperamos do TODO de nossos ídolos para apreciarmos apenas a PARTE que se destaca e merece atenção.

A música do meu cantor predileto nem sempre dialoga politicamente comigo, por mais que, por vezes, isso seja impossível. Consegue imaginar o quanto um artista foi preparado para posicionar você ideologicamente? Posso garantir: a imensa maioria não foi, a despeito de gozarem de liberdades de expressão, participação, criação e opinião. E temos a possibilidade de gostar da arte sem aderir aos posicionamentos de seus responsáveis.

Entregar a figuras públicas parte de sua formação política é até esperado. Mas tenha certeza: trata-se de algo a ser feito com muito mais senso crítico. Formatar cegamente preferências e críticas políticas a partir do comportamento de artistas pode ser arriscado quando uma sociedade é carente de formação democrática e terceiriza responsabilidades à luz do seu déficit de conhecimento.

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