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Coincidências: o fascismo eterno de Eco

Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Em 1995, no Brasil, Fernado Henrique Cardoso era empossado presidente da República, após vitória em primeiro turno no pleito do ano anterior. Era classificado como um dos líderes de um grupo mundial de atores transformado em tendência, chamada “terceira via” – nem tanto à esquerda, tampouco à direita. Lula era visto como um político bem radical de esquerda para os padrões da época. Jair Bolsonaro (PPR) era quase desconhecido, deputado federal eleito com mais de 100 mil votos no Rio de Janeiro, o terceiro colocado à época, ainda atrás de Francisco Dornelles, dono do PPR no Estado (depois PPB, PP e, hoje, Progressistas).

Assim, o que trago aqui não é uma ode contra qualquer sujeito que esteja na política em tempos presentes. Umberto Eco era genial, incrível. Falecido em fevereiro de 2016, nem sequer viu Trump ocupar a Casa Branca. Quando morreu, nosso atual presidente brasileiro era um pré-candidato desacreditado ao Planalto. Reforço: por mais incrível que Eco tenha sido, ele não era capaz de prever o futuro a ponto de nomear seus medos. Nada aqui é pessoal, é conjuntural com base em percepções acadêmicas. Umberto Eco não era um vidente, era um cientista.

Comprei em julho e já li mais de uma vez o livro O fascismo eterno. Trata-se da transcrição de uma palestra de 1995 proferida na Universidade Columbia por Eco. Um primor. Na segunda parte, da rápida obra de 60 páginas, o autor elenca 14 características para o fenômeno que se repete de forma insistente. E não é possível dizer que italianos não entendam do assunto, afinal, segundo o conferencista, foi lá que o fascismo se caracterizou de maneira mais emblemática. Discorda? Leia antes.

Importante salientar que, para o autor, não é necessário pensar na existência simultânea dos 14 elementos para se caracterizar um governo fascista. “O termo se adapta a tudo, porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará sempre a ser reconhecido como tal”. Vamos lá, de forma bastante resumida:

1 – culto à tradição, com uma combinação conveniente de formas sincréticas de crenças e práticas. Diante disso, “não pode haver avanço do saber”;

2 – recusa da modernidade, sob uma lógica de irracionalidade;

3 – culto da “ação pela ação”, o que significa a negação à reflexão. Age-se sem pensar. Por impulso. Pensar é uma forma de “castração”. Diz o autor que se tornam comuns sentenças do tipo: “porcos intelectuais”, “universidades são ninhos comunistas” etc.;

4 – nenhuma das crenças do universo sincretista dos fascistas pode ser questionada. Desacordo é traição;

5 – desacordo também é diversidade, mas o fascismo cresce com medo da diferença. A primeira resistência de um movimento desse tipo é contra os “intrusos”, o que significa dizer que se trata de um movimento racista por definição;

6 – o fascismo eterno provém das frustrações individual e social, apelando comumente às classes médias decepcionadas, nas quais encontra seus auditórios de estimação;

7 – por não haver identidade social, o que salva esse fascismo é a origem nacional, e aqui está a fonte de uma lógica nacionalista exagerada;

8 – os adeptos devem se sentir “humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo”, e fortes para vencê-los. Aqui, Eco diz que o fascismo está condenado à derrota, porque não consegue avaliar com objetividade a “força do inimigo”. Será?;

9 – não existe “luta pela vida”, mas “vida para a luta”. A questão é que sonham com a batalha final e o domínio do todo, algo que nunca ocorreu em parâmetro mundial;

10 – existe uma lógica elitista, que considera como membro o adepto ao regime. O autor sugere contradições aqui;

11 – cada ser é educado para se tornar um herói, e esse heroísmo é norma. O herói sonha com uma morte heroica, mas, como é impaciente, costuma provocar a morte dos outros;

12 – como guerra e heroísmo são “jogos difíceis de jogar”, o fascista transfere seus desejos de força e poder para “questões sexuais”, e isso justifica a origem de seu “machismo”. Entretanto, este jogo é igualmente tenso, e tudo se concentra numa lógica centrada no pênis;

13 – há desprezo à democracia, e a “vontade comum” é vista como “entidade monolítica”, na qual o povo é apenas “uma ficção teatral” de um populismo que se tornará diferente em termos qualitativos com “a TV ou a internet”. Aqui, ressalta-se a ideia central: “Cada vez que um político põe em dúvida a legitimidade do Parlamento por não representar mais a ’voz do povo’, pode-se sentir o cheiro do Fascismo Eterno”;

14 – O fascismo fala uma língua própria, com um “léxico pobre e em uma sintaxe elementar”.

Se nada acima o preocupa ou não caracteriza traços de nossa realidade brasileira, vou entender. Compreenderei facilmente sua despreocupação. Ninguém com as características acima chega ao poder apenas pela admiração de seus seguidores numa ordem que se pretende democrática. Esses fiéis, por vezes, são poucos. Fascistas chegam aonde chegam também pela conivência silenciosa, pela falta de atenção, pelo desconhecimento de valores e pelo desapego a princípios. A vantagem é que, caso se mantenham as características democráticas que os fascistas amam atacar, existe uma chance de parcelas expressivas de o eleitorado que o legitimaram acordarem para a realidade e mudar de opinião. Aos democratas, cabe torcer por isso, o que parece muito desigual. Enquanto os fascistas apelam para um conjunto infinitamente maior de elementos legais e ilegais para chegar ao poder e mantê-lo, incluindo a violência e a subversão, o sujeito apegado à democracia torce por justiça e mantém crenças no funcionamento das instituições formais, sobretudo nas eleições. Sendo assim: torçamos…

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