Artigo

Como conter as águas? Governantes em tempo de exceção

Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

A tragédia em curso no Estado do Rio Grande do Sul reascendeu o debate sobre o importante tema do papel dos governantes em momentos de exceção e de como é desenhada a representação política democrática, a qual não é um instrumento de delegação absoluta, mas também não se assemelha ao papel de um diplomata. Em outras palavras, quando elegemos um candidato para um cargo representativo, qual o grau de liberdade que ele (ou ela) tem em relação ao proposto na campanha? 

Nos últimos tempos, cunhou-se o termo “estelionato eleitoral” para apelidar os governantes que não cumprem com as promessas feitas em campanha. Não há dúvidas de que existam exageros no momento eleitoral, inclusive quanto a competências do cargo pretendido, mas a representação política é mais complicada do que possa parecer num primeiro momento, e especialmente complexa em momentos de exceção. 

É possível que, na melhor das hipóteses, uma candidata seja muito clara no seu programa de governo acerca do que pretende para diferentes áreas de políticas públicas. No entanto, seria impossível contemplar todas as eventualidades a serem enfrentadas pelo seu mandato. Assim, mesmo que haja um detalhamento das propostas para a saúde pública, dificilmente saberíamos, nas eleições de 2018, como candidatos e candidatas se posicionariam na eventualidade de uma pandemia. Assim, também seria difícil para os gaúchos anteciparem a tragédia atual quando escolheram os próprios representantes em 2022. 

O melhor mecanismo possível para reduzir essas incertezas ainda são os partidos políticos. Por mais que seja custoso ao erário público a manutenção dessas agremiações, a inerente incerteza que caracteriza a representação política precisa de instrumentos para reduzir a possibilidade de surpresas. Assim, o principal substituto do critério ideológico dos partidos políticos é a confiança interpessoal cega. Apelidada por alguns de populismo, ainda que esse termo seja mais complexo do que isso, a dúvida que caracteriza a representação política corre o risco de ser resolvida pela confiança absoluta em figuras carismáticas. 

Isso posto, permanece a questão de qual seria o papel esperado do governante em tempos de exceção. Pensador que iniciou o conceito político moderno — injustiçado pelo discurso vulgar —, Nicolau Maquiavel foi o responsável por concluir, ainda no século 16, que a grande vantagem da república em relação à monarquia é que, na primeira, o povo poderia escolher o governante mais adequado para cada momento determinado. O mais adequado ao tempo de paz poderia não ser o melhor em tempos de guerra, no exemplo do florentino. 

Independentemente das características da república, outro ponto importante trazido por Maquiavel é que os dois elementos precisam ser levados em conta na atuação dos governantes: a fortuna e a virtù. A primeira representa tudo aquilo que é inesperado ou que não dependa da ação humana, como o volume de chuvas ou um vírus sem tratamento que surge de repente. A virtù seria a capacidade de o governante se adaptar às intempéries do momento, inclusive se adiantando a fortunas desfavoráveis. Curiosamente, o exemplo utilizado pelo florentino para falar dos dois conceitos é o da construção de diques para conter “rios impetuosos”.

Comparo a sorte a um desses rios impetuosos que, quando se irritam, alagam as planícies, arrasam as árvores e as cassas, arrastam terras de um lado para levar a outro: todos fogem deles, mas cedem ao seu ímpeto, sem poder detê-los em parte alguma. Mesmo assim, nada impede que, voltando a calma, os homens tomem providências, construam barreiras e diques, de modo que, quando a cheia se repetir, ou o rio flua por um canal, ou sua força se torne menos livre e danosa. O mesmo acontece com a Fortuna, que demonstra a sua força onde não encontra uma Virtù ordenada, pronta para resistir-lhe e volta o seu ímpeto para onde sabe que não foram erguidos diques ou barreiras para contê-las.” (Maquiavel, 2008)

Esperemos, como adiantado por Maquiavel, que após passado o momento da maior crise, “voltando a calma”, que possamos, como sociedade, eleger governantes dispostos a construir diques adequados, enfrentando a questão das mudanças climáticas e buscando salvaguardar os vulneráveis.

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