O espectro do impeachment voltou a rondar o Palácio do Planalto. Será que, desta vez, a “santa aliança” da velha política sucumbirá diante dos fatos? Como sabemos, a lei do impeachment é vastíssima, a ponto de abarcar quase tudo o que se queira tomar como “base jurídica” para a deposição constitucional do presidente. Portanto, se nela fizeram caber as “pedaladas fiscais”, como não caberia a inaceitável coleção de ações, omissões, declarações e posicionamentos do presidente contra os poderes, a liberdade de imprensa, as liberdades individuais, as minorias, a saúde coletiva e a democracia?
Formalmente, o impeachment é um dispositivo jurídico e político. Entretanto, na prática, trata-se de um instrumento essencialmente político, pois, no modelo adotado no Brasil – oriundo da matriz norte-americana [ver referência 1] –, tanto a admissibilidade do processo como o julgamento do crime de responsabilidade competem a atores políticos, e não a atores jurídicos. Não é possível, portanto, exigir que agentes políticos deixem de atuar politicamente quando incumbidos de julgar os atos presidenciais.
Tais decisões, por sua vez, respondem a dois incentivos: (a) os interesses que estão em causa nessa tomada de decisão e (b) o humor da população em relação ao tema. Assim, se o impedimento de um presidente ameaçar os interesses da maioria parlamentar e, ainda, se não houver apoio popular massivo à sua deposição, inexistirão as “condições políticas” para o impeachment. O contrário, obviamente, também é verdadeiro: se não contemplar satisfatoriamente os interesses dos grupos políticos que controlam o Congresso e se desagradar a expressiva maioria dos eleitores, o presidente pavimentará o seu caminho rumo ao cadafalso.
Esta lógica condiz com os achados dos estudos de política comparada sobre as interrupções constitucionais dos mandatos presidenciais na América Latina. Segundo as pesquisas, as condições necessárias para o impeachment são estas: (1) crise econômica, (2) escândalos políticos, (3) protestos de rua e (4) perda do apoio da maioria parlamentar. Recentemente, numa tese de doutorado que orientei sobre os impeachments brasileiros [ver referência 2], identificamos outras duas condições fundamentais: (a) taxa de aprovação popular do presidente e (b) formação de uma oposição legislativa majoritária. Desse modo, notamos que é necessário que a taxa de “ruim/péssimo” da avaliação popular seja superior a 50%, com efeitos incrementais. Se isso ocorrer, a maioria parlamentar, que já não dá suporte coeso ao governo, vai se sentir estimulada a se unir contra o mandato presidencial.
Além disso, também detectamos a que ordem em que essas condições devem aparecer – o que chamamos de “rede causal”. Num contexto de (1º) grave crise econômica e de escândalos políticos, (2º) as taxas de aprovação do presidente tenderão a declinar. Se a reprovação chegar ao ponto da indignação, terão início (3º) protestos de rua massivos e recorrentes. Logo, crise econômica e escândalos são as condições para a reprovação popular do presidente; estas, por seu turno, são a condição para os protestos de rua. Enquanto isso, se as relações entre o presidente e a sua coalizão estiverem estremecidas, a reprovação popular estimulará a emergência de uma oposição majoritária para aprovar o pedido de impeachment e a eventual destituição desse presidente.
Este modelo indica, portanto, os parâmetros para o exame tanto das atuais condições para o impeachment como para o acompanhamento da evolução desta configuração. Como estamos no atual momento?
Crise econômica e escândalos políticos: check!
Reprovação popular: ainda longe da proporção necessária.
Protestos de rua: em condições de pandemia, só restam os panelaços e as carreatas, que não produzem os mesmos impactos.
Apoio legislativo: embora em clima de beligerância com o Congresso, o presidente tem o respaldo de uma aliança que, por enquanto, sustenta o seu mandato. São três agendas contraditórias em diversos pontos, mas que, em razão das circunstâncias, toleram-se porque acreditam nos ganhos mútuos desta associação: mercadismo (a ponte para o futuro), militarismo (lei e ordem e cultos às armas e ao autoritarismo) e moralismo (grupos religiosos e igrejas contra as pautas identitárias).
Assim, o presidente “balança, mas não cai” (ainda) porque se apoia nestes dois pilares: (a) aprovação de uma parcela relevante da população e (b) apoio da aliança dos três “Ms” no Legislativo.
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