Gosto muito de ditados, ou expressões populares. Isso não significa concordar ou seguir o que cada coisa dessas diz, mas entender algo sobre a cultura dos povos que os utilizam. Para este texto vou me servir de dois ditos que, no limite, tratam da mesma coisa:
— Pau que bate em Chico bate em Francisco.
— Não podemos ter um peso e duas medidas.
A segunda sentença também é escrita para determinar injustiça, do seguinte modo: “não podemos ter dois pesos e duas medidas”. E a partir dessa diferença se constrói um debate em que alguns afirmam que, se existem dois pesos, é natural que existam duas medidas. Perfeito. Entramos aqui no mundo do idiomatismo, onde uma construção errada se torna consagrada, mas determina perfeitamente o que desejamos dizer. Assim, tanto “um peso e duas medidas” quanto “dois pesos e duas medidas” vão no mesmo sentido de trazer a ideia de injustiça. Voltaire seria o autor da sentença para dizer das diferenças, na França de seu tempo, na aplicação da justiça a nobres e “comuns”. Sigamos.
A parte politicamente incorreta sobre utilizar um pedaço de madeira para atacar Chico e Francisco com a mesma intensidade nós deixaremos de lado, mas aqui o objetivo é o mesmo: dizer que, se a punição pesa de um jeito sobre um, tem que pesar da mesma forma sobre o outro. Percebeu? As duas frases clamam por IGUALDADE perante a lei, algo que estamos longe de viver, e principalmente sentir, em nosso país.
Um exemplo concreto de tal sentimento me vem à mente a partir de uma pergunta que fiz para jovens com quem trabalhei durante cerca de 20 anos nas periferias de São Paulo. Em tempos mais recentes, medimos a concordância com a sentença: “no Brasil, a justiça privilegia os ricos”. Seja isso verdadeiro ou não, o grau de concordância dos estudantes atingiu algo entre 77% e 79% entre 2017 e 2019. Clamar por punições iguais a Chico ou a Francisco não é algo disseminado à toa, tanto quanto pedir que as coisas sejam pesadas e medidas sob a mesma intensidade. Vamos adiante, entrando no assunto central da reflexão.
Qual o valor mais importante para você em nossa sociedade? Vou dar algumas alternativas que movimentam filósofos faz séculos: a vida, a propriedade, as liberdades ou a democracia? Criar um ranking disso mostra algo perigoso em tempos atuais. Eu partiria da hipótese basilar de que tudo isso é, para nossos valores e cultura, essencial, tende ao universal, é pouco questionável, mas, principalmente, repleto de limites. A defesa da vida tem limites, e as discussões sobre o aborto e a eutanásia são bons exemplos. A defesa da propriedade tem limites, e não podemos ter tudo do modo como queremos sem pagar impostos, respeitar condições de uso, compreender a lei etc. As liberdades têm fronteiras, e não sou livre para me associar em torno do ilimitado, ou seja, o crime organizado ou a máfia não são expressões da liberdade de associação. A liberdade de expressão esbarra em valores, e o nazismo, o racismo e a homofobia são ilegais e juridicamente passíveis de punição. Ir e vir também tem barreiras; fosse diferente, não existiriam muros, cercas, portas e leis.
Por fim, com a democracia não é diferente: existem limites para o que chamamos de participação e construção conjunta da realidade, havendo regras para a tomada de decisões e para a inclusão de pessoas no rol de eleitores e candidatos, por exemplo. Percebe? Valores essenciais, praticamente inquestionáveis, que existem dentro de LIMITES pactuados e passíveis de punições se ultrapassarmos a regra. Agora, vamos ao desfecho disso tudo na forma de notícias fictícias:
— Quadrilha detida por planejar sequestro de empresário. Resgate seria de milhões;
— Grupo radical acampa na Esplanada e diz que pode invadir o Congresso Nacional;
— Sem-terra planeja invasão de propriedade privada rural produtiva;
— Empresários pensam em golpe de Estado contra resultado de eleição.
Elenque o que cada coisa acima afronta em torno dos valores que foram apresentados. O primeiro item, às liberdades e à propriedade. O segundo, contra uma instituição democrática do Estado e contra o bem público. O terceiro, contra a propriedade. O quarto, contra a democracia e o Estado. A questão central é, de novo: a que você dá mais valor? Em tese, não há como estabelecer classificação capaz de dizer que a liberdade é maior ou menor que a democracia, que a propriedade privada é mais importante que a liberdade ou que o Estado etc. Mas algo precisa ser dito: à letra da lei, os itens um e quatro são crimes pela “simples” trama e defesa, os dois outros só serão punidos se consumados.
Conclusão: a justiça não é inteligente apenas quando desbarata um sequestro; e se torna injusta quando desvenda ameaça de golpe de Estado, tratado atabalhoada e criminosamente como liberdade de expressão. Sujeito que trama, sugere, defende e busca condições para imaginar um “assalto” contra um país que, democraticamente, dá indícios de que prefere um partido a outro, numa lógica eleitoral, tem que ser tratado como criminoso. E, como tal, obviamente, tem direito à ampla defesa, pois sabemos que, infelizmente, a justiça age politicamente e erra.
Mas, se comprovado o que se acusa, tais elementos devem ser punidos, algo raro na visão do senso comum. Atentar contra a formatação democrática é tão tenebroso quanto planejar um sequestro. E se, para você, tomar sua casa é mais bizarro do que saquear o respeito ao direito coletivo de escolha, falhamos enquanto sociedade. Se a sua liberdade para proferir e tramar crimes contra o Estado é mais sagrada que o nosso direito de escolhermos, juntos, nossos representantes, erramos como povo. Cuidado. Essas coisas não existem em rankings que ofertam o direito de ultrapassarmos os limites da lei e da justiça.
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