Sou de uma geração que assistiu ao fim da ideia de bipolarização do mundo. Tudo girava em torno de ser de esquerda ou de direita, até que veio o cessar da Guerra Fria, a globalização e a noção de uma garantia quase absoluta de diversidade de causas, impulsionada pelas liberdades de associação e expressão. Na realidade brasileira, tudo isso ficou fortemente caracterizado pela Constituição Federal de 1988 e pela eleição de Fernando Henrique Cardoso para o Palácio do Planalto, em 1994: um documento afirmando liberdades e um presidente eleito por uma legenda de centro. O mundo começava a mostrar, na prática, para onde caminhávamos.
O tempo passou, e fortalecemos a ideia de uma sociedade de causas, característica marcante do século 21. Se nos anos 1980 e 1990 falávamos em “rebeldes sem causa”, o que não falta atualmente é causa, mesmo que nem todas carreguem consigo algum tipo de rebeldia. Em contrapartida, se a sociedade se tornou múltipla em suas abordagens e defesas, a política foi parar nas extremidades, o que tem gerado intolerância expressiva e resistências quase absolutas.
Assim, um dos principais desafios do instante atual está atrelado às especificidades trazidas em cada uma dessas bandeiras levantadas por milhares de grupos e suas defesas mais ou menos racionais de preocupações. A realidade, sobretudo a virtual, blinda os ativistas de tal modo que dois fenômenos ficam evidentes: a intolerância a quem não compreende suas agendas e, por vezes, a falta de coerência temporal com algumas dessas questões, gerando choques intensos e diversos outros desafios. Vou utilizar aqui um exemplo recente que ilustra o que tenho a dizer.
Em 1989, tinha apenas 14 anos e era fascinado por futebol. Fiquei assustado quando soube que quatro jogadores do Grêmio foram condenados na Suíça, por um caso de estupro que teria ocorrido em 1987 contra uma menina de 13 anos. Na época, o assunto “até incomodou”, mas estávamos distantes desse mundo repleto de causas e, até então, extremamente machista. Quando os atletas voltaram ao Brasil, após menos de 30 dias na cadeia, alguns jornalistas comemoraram a soltura do quarteto e criticaram a moça!
Longe de mim, infelizmente, dizer que, hoje, atingimos algo ideal em relação à forma como a mulher é respeitada na sociedade, mas precisamos tecer considerações sobre as causas e as gerações. A primeira delas, para deixar isso muito evidente: em 2023, o mundo está infinitamente mais atento às relações de gêneros do que há 35 anos. Ponto para o ativismo de quem luta (e lutou) por uma causa essencial — mas ainda falta muita coisa, sobretudo coerência.
Cuca, um dos quatro atletas do Grêmio, não foi acusado de estupro sozinho. Dois deles eram um goleiro promissor, que não se fixou em clube algum por mais de três anos, e um atacante, que também não teve grande destaque na vida esportiva. No entanto, Cuca foi um atleta vencedor e um treinador com grandes conquistas que trabalhou em três dos quatro maiores clubes paulistas. Faltava apenas o Corinthians, e esse dia chegou.
Não sem, em 2023, protestos de segmentos do clube que se diz “o mais democrático do Brasil”, ao menos desde os anos 1980, que logo trouxeram à tona o caso do estupro, pedindo respeito às mulheres e solicitando que o clube desistisse da contratação. Concorda? Eu, particularmente, compreendo em absoluto as razões que levam o time de futebol feminino e a torcida do Corinthians a reclamar da situação, assim como vejo como bastante relevante a postura dos são-paulinos contra o goleiro Jean, hoje no Paraguai, e contra o atacante Pedrinho, acusados de agredirem as companheiras. Incluiria aqui ainda o exemplo de Dani Alves, preso acusado de estupro na Espanha. A torcida do Santos não fica atrás, recusando-se a receber o ídolo Robinho, condenado na Itália, em caso semelhante. E agora? Pois é, agora precisamos cobrar coerência.
Cuca não foi mal recebido no São Paulo, no Santos e no Palmeiras quando treinou nesses clubes. Ao menos a reverberação de agora não soou assim faz alguns anos atrás. Mas algo precisa ser dito sobre o Corinthians: ao lado de Cuca no caso de Berna, em 1987, estava Henrique Arlindo Etges, zagueiro que vestiu a camisa do glorioso time do Parque São Jorge entre 1992 e 1997 por quase 300 jogos. Nas galerias virtuais do clube, o atleta é tratado como ídolo, presente no título da Copa do Brasil de 1995 e nos paulistões de 1995 e 1997. A resposta para isso é simples: eram outros tempos. Será mesmo? O clube se orgulha da sua luta democrática desde a era da bipolarização. E agora?
A resistência a Cuca está atrelada aos novos tempos? Às novas causas? Espero que sim, mas, especificamente aqui, para o mesmo caso, a torcida não teria de promover algum tipo de revisão histórica de seus ídolos? Henrique esteve com Cuca, e ambos foram condenados a 15 meses de prisão em regime aberto — algo que nunca foi cumprido e prescreveu anos depois —, e a pagar uma multa de US$ 8 mil cada. E agora? Um continua herói, tendo sido contratado menos de quatro anos após a condenação em 1992, e o outro não merece, depois de mais de 35 anos do crime, uma oportunidade de trabalho? Vou insistir na ideia: a causa me sensibiliza e, sinceramente, sou do time que tenho severas críticas ao sujeito que cometeu um crime desse tipo em 1987. Mas e o seu companheiro de atentado?
Numa coluna de política, escrevo este texto com uma única missão: o quanto estamos efetivamente sintonizados com as nossas causas presentes, sonhando com um futuro melhor e diante da necessidade de revisitar um passado comprometedor? Ideias podem mudar, desculpas podem ser aceitas, perdões merecem atenção, justiça precisa ser feita, mas, principalmente, precisamos ser coerentes com nossas trajetórias e nossos valores. O mundo só vai melhorar se mudarmos muito do que carregamos de pior, e o machismo é uma dessas coisas assombrosas. No entanto, tal realidade, que, num instante inicial, pode ser seletiva e ocasional, no médio e longo prazos precisa se concentrar em não dar à realidade a ideia de que estamos vivendo ações protagonizadas pela ótica de “justiceiros”. Para que Cuca mereça a crítica que está recebendo (e ele merece), parte dos corintianos precisará revisitar a própria história e incluir em sua narrativa outros personagens do mesmíssimo caso — e que isso sirva para todos nós, caso contrário, continuaremos assistindo a gente tratando aberrações como “traços culturais” ou como “mimimi”. Tirar Cuca do Corinthians pode ser uma bandeira representativa e um ato simbólico relevante, mas revisar a história se tornará um gesto de coerência.
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