Desde 2018, estamos em uma encruzilhada na qual não mais se trata de escolher o projeto de Brasil que se considera mais próximo do ideal, ou do arcabouço de políticas que se almeja para o País, ou do papel que se imagina que o Estado deva assumir. A escolha, desde aquele momento, encontra-se num nível mais primário e se dá entre a opção pela manutenção mínima de um Estado democrático e de instituições democráticas por um lado, e um caminho enevoado posto por figuras que se colocam como outsiders, anti-establishment e antipolítica, por outro.
Como diria meu conterrâneo Guimarães Rosa, “o que a vida quer da gente é coragem”, e isso serve também para estes momentos em que a democracia tem de ser defendida. Por mais imperfeita e limitada que o modelo liberal brasileiro ainda seja, por mais críticas que tenhamos sobre a necessidade de um aumento de sua qualidade, por mais injustiças profundas que ela ainda permita acontecer com as minorias sociais do País, ainda assim, ela é o que nos dá o mínimo para que nos desenvolvamos como nação.
Lá em 2018, pensei que todos os democratas estariam entendendo que se tratava de um momento em que a defesa da democracia deveria ser mais arrojada e que aquela era a ocasião de se defender algo muito mais basilar, a questão era defender a própria democracia. Mas não foi isso que se deu. Esqueceram o que Stuart Mill já havia avisado, em 1861, acerca do erro que é pensar que a tendência das coisas é progresso. Mill sublinhou, em seu Considerações sobre o governo representativo, que, na verdade, todas as loucuras, todos os vícios, todas as negligências, toda a indolência, todo o desleixo da humanidade constituem uma força que, sem cessar, arrasta para o mal todos os assuntos humanos, e que essa força só é controlada – e impedida de arrastar tudo à sua frente – por uma classe de pessoas cujos esforços tendem para um fim útil e elevado.
Pois bem, chegamos a junho de 2021, depois de inúmeras boiadas passadas, com um país sem economia e sem saúde, com o caldo de anticientificismo, negacionismo, perseguição à imprensa, distribuição avançada de fake news e ataques inúmeros a instituições, pessoas e países derramado.
É como disse Carlos Drummond de Andrade, também meu conterrâneo: “E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou. E agora, José?”.
Bom, eu diria a José que há uma luz, sim, tardiamente acesa, mas que pode mostrar que, enfim, democratas estão acordando. E isso foi demonstrado no encontro entre Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva. Estes, que são lideranças democráticas importantes no Brasil, se encontraram em maio de 2021, por convite do ex-ministro Nelson Jobim. Os dois ex-presidentes se reuniram para discutir um problema que é maior do que seus partidos rivais, PSDB e PT, maior do que suas figuras públicas e maior que seus egos: o ataque sistemático que a democracia brasileira tem vivido. Lembremos que os dois políticos já estiveram lado a lado para fazer a defesa democrática entre 1970 e 1980, em plena ditadura militar, e em 1983, no movimento pelo voto direto, conhecido como Diretas Já. O encontro demonstrou a maturidade política dos dois e sinaliza que, se vivemos “sinais dos tempos”, então também é necessário a construção de ações ousadamente pragmáticas.
De acordo com Stuart Mill, é preciso ter em mente que o mecanismo político não age sozinho e que as instituições representativas, para sua permanência, dependem necessariamente da presteza do povo em lutar por elas quando estiverem ameaçadas.
Assim, FHC e Lula demonstram a leitura precisa dos nossos tempos, leitura a qual todos os democratas já deveriam ter também absorvido; isto é, para que tenhamos possibilidade de continuarmos disputando projetos para o País, é preciso que, de saída, tenhamos democracia.
Só assim a tragédia não se repetirá como farsa.
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