Nas últimas semanas, vimos o homem mais rico do mundo, Elon Musk, comprar o Twitter, em uma operação de 44 bilhões de dólares[i]. Não por acaso, o bilionário que criou a Tesla (empresa que produz carros elétricos, armazenamento de energia e painéis solares), a PayPal (empresa de pagamentos online), a Boring Company (empresa que investe em exploração no subsolo), a SpaceX (empresa voltada para a exploração aeroespacial)[ii] e que controla um quarto dos satélites que orbitam a Terra (dados de 2021)[iii] comprou uma grande plataforma social para chamar de sua.
As plataformas de mídias sociais têm sido portas de entrada importantes para o controle de uma infinidade de dados de pessoas e organizações, assim como para a venda e a manipulação informações ao bel-prazer da excentricidade dos donos das big techs.
Se, em algum momento no começo dos anos 90, a internet trouxe esperança de uma democratização radical das comunicações (AMADEU, 2020), muito como consequência da ideologia de liberdade construída a partir da confluência das quatro camadas que construíram a cultura da internet, a cultura tecnomeritocrática; a cultura hacker; a cultura comunitária virtual; e a cultura da inovação empresarial (CASTELLS, 2003), hoje, pode-se dizer que, há uma grande crise formada por três dimensões, a crise da estrutura das redes distribuídas; a crise do ideal da participação; e a crise de livre fluxo (AMADEU, 2020). A primeira dimensão aponta para a internet como rede de arquitetura distribuída, mas que “não anulou os efeitos da economia de rede, que possuem tendências monopolistas e concentradoras” (AMADEU, 2020:250), ou seja, a “internet possibilitou que o poder fosse amplamente distribuído, mas não democratizado” (BALKIN, 2018). A segunda dimensão mostra que a internet é um terreno em disputa e que, ao mesmo tempo que há esforços democratizadores, há também grupos antidemocráticos ganhando força (AMADEU, 2020). Por fim está a crise do livre fluxo de dados. Esta chama atenção para o “petróleo do século XXI”, os dados, e para o modelo de negócios consolidado a partir de sua captura, tratamento e venda, a nomeada “economia de dados”.
Talvez por uma inocência pueril dos anos 80 e 90, havia esperança de que, em nossa sociedade, a internet mudaria por si só o rumo das coisas, como num sonho, em que robôs ursinhos carinhosos nos colocariam no rumo das democracias de alta qualidade. Não passou muito tempo até que a utopia do determinismo tecnológico fosse dissipada como uma nuvem, dando lugar para a realidade crua da vida em uma sociedade neoliberal, extremamente desigual e com grandes corporações privadas dando as cartas econômicas (e políticas). E isso quer dizer que a internet e suas tecnologias serão manipuladas e demandadas neste contexto.
O que podemos ver a partir disso é um cenário muito problemático. Dados de 2016 levantados por Sérgio Amadeu (2020) mostram uma situação chocante. Quando se compara o faturamento das quatro maiores plataformas norte-americanas –Apple, Amazon, Google e Facebook – aos PIBs de alguns países latino-americanos, a receita das quatro é 84,6% do PIB argentino, 187% do PIB chileno, 891% do PIB uruguaio e 26,1% do PIB brasileiro.
Esta concentração de renda em poucas empresas parece estar levando os CEOs a sentirem-se, inclusive, autorizados a meter o bedelho nas democracias mundiais. Na verdade, essas costuras entre poder econômico e poder político não são novidades. Przeworski (2021), em seu Por que as eleições importam?, vai salientar categoricamente que as próprias instituições representativas foram edificadas para proteger o status quo contra a vontade da maioria, de modo a silenciar as vozes populares; e ainda, reformas foram feitas para evitar ameaças revolucionárias e agitação popular, mantendo os privilégios da elite (PRZEWORSKI, 2021. ALMEIDA, 2021).
Com a emergência do capitalismo de plataforma, esta realidade tem ficado cada vez mais assustadora, e os megaempresários do setor de inovação vem intervindo sobremaneira em nossas democracias. O Facebook, em fevereiro deste ano, por exemplo, liberou que seus usuários façam elogios a grupos neonazistas ucranianos, especialmente ao Batalhão de Azov. A empresa julgou que isso seria salutar neste momento de guerra[iv]. Aliás, o Facebook vem há algum tempo em uma maré de escândalos, desde denúncias de usos de dados pessoais de seus usuários para munir campanhas políticas de extremistas[v], aos relatos de ex-funcionários de que haveria condescendência a discursos de ódio em prol do crescimento da própria plataforma[vi]. Outra plataforma que tem se metido na democracia e nos movimentos da sociedade civil é o iFood. Em artigo impressionante, a Agência Pública[vii] mostrou como a empresa usava técnicas online-offline para desmobilizar movimentos de entregadores por melhores condições de trabalhos.
Nesta toada, vem o Colonizador de Marte[viii], Elon Musk, e sua compra do Twitter. Mídia social esta que, segundo ele, devia aderir rigorosamente ao princípio da “liberdade de expressão”[ix], e que, não por acaso, foi onde ele postou a frase negacionista “o pânico do coronavírus é burro” (“The coronavirus panic is dumb”)[x] e onde publicou plágios das ilustrações da artista Meli Megali[xi]. O que nos leva à pergunta: O que é “liberdade de expressão” para Musk? Espalhar negacionismo e plagiar pessoas? Então, é este “libera geral” que ele vai instaurar em seu novo brinquedo, o Twitter?
Parece que nos encontramos em um beco sem saída, em que, ao mesmo tempo que grande parte da nossa política é feita em plataformas digitais privadas, e o Twitter é uma das mídias que concentram essas atividades, ficamos à mercê da maneira como bilionários, do alto de seus egos e esforços de maximização de lucros, entendem a democracia, a liberdade de expressão, o que é certo ou errado, o que deve ser permitido ou não e, principalmente, o que é papel deles moderar, liberar e sobre o que devem dar pitaco.
Referências bibliográficas:
ALMEIDA, Helga. Resenha. Por que eleições importam? Cadernos da Escola do Legislativo. Volume 23. Número 40. Jul/dez 2021
AMADEU, Sérgio. A internet em crise. In: Emir Sader (Org.). E agora, Brasil? 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora do LPP (Laboratório de Políticas Públicas), 2019, v. 1, p. 245-264.
BALKIN, Jack M. Free speech in the algorithmic society: big data, private governance, and new school speech regulation. UCDL Rev., v. 51, p. 1149, 2017.
CASTELLS, Manuel. A galáxia internet: reflexões sobre a internet, negócios e a sociedade. Zahar, 2003.
PRZEWORSKI, Adam. Por que as eleições importam? Rio de
Janeiro, Brasil: EdUERJ, 2021.
[i] https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2022/05/01/elon-musk-relembre-tretas-e-polemicas-que-o-bilionario-causou-na-internet.htm
[ii] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61224399
[iii] https://www.hypeness.com.br/2021/02/elon-musk-controla-um-quarto-dos-satelites-que-orbitam-a-terra-e-vai-lancar-milesimo/
[iv] https://theintercept.com/2022/02/25/facebook-neonazistas-da-ucrania-contra-russia/
[v] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-43461751
[vi] https://brasil.elpais.com/economia/2021-10-26/facebook-tolerou-discursos-de-odio-em-paises-em-guerra-em-prol-de-seu-crescimento.html
[vii] https://apublica.org/2022/04/a-maquina-oculta-de-propaganda-do-ifood/
[viii] https://exame.com/ciencia/como-elon-musk-pretende-colonizar-marte-e-criar-suas-proprias-leis/
[ix] https://twitter.com/elonmusk/status/1507259709224632344?s=20&t=FQdwveJDQQA108ZbpgtJRQ
[x] https://twitter.com/elonmusk/status/1236029449042198528?s=20&t=y9FvyFn3nS36BVqSACz3Ow
[xi] https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2019/06/elon-musk-diz-ter-apagado-sua-conta-do-twitter-mas-ela-continua-ativa.html
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