Publicado no início deste mês de janeiro, La Defáite de l’Occident é o mais recente livro do polêmico historiador, demógrafo e sociólogo francês Emmanuel Todd. O ensaio já despertou críticas iracundas na imprensa e em alguns meios acadêmicos do país de Charles de Gaulle. A artilharia dos indignados bombardeia dois pilares estruturais da obra: a abordagem utilizada, percebida como flagrantemente falha e definitivamente démodé, e a tese defendida, denunciada como uma descarada peça de propaganda pró-Putin/pró-Rússia.
Quanto à abordagem, as fragilidades residiriam na aplicação do esquema analítico da história de longa duração (la longue durée), oriunda da École des Analles, principalmente a perspectiva adotada pela primeira geração — Lucien Febvre e Marc Bloch. Ao lado disso, a simplista relação causal entre duas variáveis explicativas — a taxa de natalidade (variável demográfica) e a religião (variável sociológica) — e o fenômeno a ser compreendido, que é a debacle dos valores ocidentais e, por consequência, do seu protagonismo mundial.
Com efeito, esta é a tese: desde os anos de 1960, já começaram a se tornar visíveis os sinais de um longo processo de esgarçamento do tecido social e dos valores morais do Ocidente. Para além dos fatores democráticos, a centralidade explicativa recai — e penso que de maneira preponderante — sobre o protestantismo, responsável pelas bases morais que assegurou pujança econômica e coesão social de duas nações que exercem predomínio no mundo contemporâneo: Grã-Bretanha e, principalmente, Estados Unidos. Contudo, o que pode ocorrer quando as bases morais dessas duas forças motrizes da hegemonia ocidental no mundo se diluem?
Reconstruindo essa história de “média duração”, Todd concluiu o seu percurso com uma dose de pessimismo weberiano: esses dois centros hegemônicos escorregaram gradualmente para o pântano do niilismo, ou seja, a completa perda de sentido acarretada pelo individualismo excessivo e a ambição materialista desmesurada. Essa seria, digamos assim, a base imaterial do declínio do Ocidente. Sim, a sua análise segue muito de perto o mote do clássico A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber. Assim como Weber identificou, nos valores morais do protestantismo, os alicerces do capitalismo e da própria sociedade moderna ocidental, Todd relacionou a decadência contemporânea dos modelo ssocial e econômico ocidentais precisamente como o efeito direto da dissolução desses mesmos valores.
O problema é que, enquanto a essência da ética protestante se esvai pouco a pouco (as próprias igrejas neopentecostais contribuem para isso), nenhuma outra instituição tem sido capaz de desempenhar a imprescindível função de produzir o sentido comum de um futuro justo compartilhado. Instala-se, assim, o vazio de propósitos coletivos que caracteriza todos os episódios de decadência civilizacional. Esse quadro é agravado pelo fato de que as atuais fontes produtoras de significado social disseminam o narcisismo ideológico do culto do “eu atomizado” e do imediatismo. Dessa maneira, a frugalidade exigida pela vida compartilhada com o outro deu lugar à futilidade da egolatria e do exibicionismo, assim como à desenfreada busca de ganhos materiais a qualquer custo, mesmo que isso implique a destruição dos outros e, quiçá, a autodestruição.
Por outro lado, as sociedades que mantêm as duas principais instituições produtoras de sentido coletivo, de moralidade coesiva — a família e a religião —, conservam fortalecidas as pilastras do Estado-Nação. Este seria o caso da Rússia, mas também, a seu modo, dos países asiáticos. Não por menos, os chefes de Estado desses países investem em políticas de autonomia cultural, rejeitando interferências estrangeiras que possam modificar as suas “normas sociais”. Tais lideranças, sabedoras dessa relação umbilical entre instituições básicas (família e religião) e a coesão necessária à soberania cultural de nações autônomas, procuram, portanto, preservar a tradição.
Isto é, Todd sustenta que, se a ética protestante deu os fundamentos morais ao capitalismo nascente e ao seu posterior desenvolvimento, a crise das sociedades capitalistas ocidentais tem as suas raízes na erosão desses valores. Quando se fala, portanto, em corrosão da democracia liberal, deve-se ter em vista que não são os líderes populistas de extrema direita que as corroem, pois a corrosão dos regimes democráticos foi anterior e, uma vez instalada, oportuniza a emergência de populistas extremistas. As democracias liberais não perderam o sentido de representatividade graças aos discursos extremistas, uma vez que estes encontraram acolhida popular em razão das falhas da democracia representativa, que deixou de ser percebida como um sistema de representação efetiva capaz de produzir sentido coletivo para um futuro compartilhado — ou seja, esperança.
Por essa ótica, o crescimento dos partidos de extrema- direita, que, além de outros aspectos, professam o apego/retorno aos valores tradicionais cristãos — especialmente a família, Deus (religião) e pátria, corresponde ao preenchimento desse vazio existencial coletivo. As igrejas que crescem, as religiões que se expandem, professam valores que a chamada “elite ocidental” descartou por obsoletos. Os valores seculares dessas elites são percebidos, cada vez mais, como discursos hipócritas que se prestam a dividir as sociedades e drenar as suas energias e riquezas. A democracia liberal, na verdade, é uma oligarquia plutocrática, o “mundo baseado em regras”, na prática, é a imposição das elites anglo-americanas sobre os demais países — o livre-mercado é nem uma coisa, nem outra. O que é vendido como verdade, é mentira. Nada tem sentido! Esse é estado de ânimo (ou de desânimo) que a perda de significados coletivos provoca.
Certamente, esse modelo interpretativo levanta a sobrancelha de muita gente, afinal, essa conversa de que a família e a religião são centrais tanto para a coesão social como para um Estado-Nação soberano deixa no ar um aroma de discurso conservador. Contudo, devemos ponderar que essa análise interpretativa, em essência, é um prolongamento da tese weberiana acerca da matriz religiosa que conferiu a especificidade e a eficiência do mundo ocidental, um modelo explicativo canônico no campo da sociologia política. Igualmente canônica é a abordagem de Émile Durkheim, o principal fundador da sociologia francesa, que manifestou preocupações semelhantes. Ademais, o ponto de vista de Todd não discrepa das conclusões de Alexis de Tocqueville, no seu clássico A democracia na América, até hoje reverenciado como uma das análises mais acuradas da democracia e das bases da política norte-americana.
Sobretudo, a despeito das críticas — algumas válidas —, o ensaio de Todd tem como um dos seus principais méritos relembrar a principal lição de Weber sobre a essência da política. Qual seja, para racionalizar a crua e sangrenta disputa de recursos e dar finalidade coletiva aos indivíduos, a política deve, acima de tudo, produzir sentido que dê significado transcendente (para um objetivo futuro) à ação humana. Deve nos motivar enquanto comunidade.
Agora, respondamos: qual sentido a política vem produzindo nos últimos anos?
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