Já se tornou lugar comum na literatura Ocidental, de Ésquilo a Freud, a afirmação de que, para a fundação e a permanência de uma comunidade política, são necessárias a morte (nem que seja simbólica) do pai tirânico e, em seguida, a produção de confiança ou de laços sociais comuns entre os integrantes da comunidade.
O que isso significa? Matar o pai é, antes de tudo, a possibilidade que os membros de um grupo têm de encarar a lei (o pacto, a aliança, os laços sociais) como patrimônio comum – e não como o exercício pessoal do Um, como o senhor da lei. Este assassinato precisa acontecer para dar cabo às fantasias infantis de amor e ódio que se constroem diante tanto de frustrações como das tensões que as vidas social e política geram.
No Brasil, este tema foi muito bem demarcado por Gilberto Freyre, que nos alertou que “nosso pai tirânico” aparecia no modelo da Casa-Grande e senzala (1933), fundado para satisfazer ilimitadamente os apetites e a obsessão de lucros fáceis dos senhores de engenho. Esses excessos, diz Freyre, nos custariam anomia social e fragilidade política.
Oliveira Viana insistia que o amor do brasileiro ao pai tirânico e à sua formação social clânica seriam as razões centrais dos males sociais e políticos nacionais. Os afetos criados por este modelo, ponderava Viana, impossibilitariam a unidade social, a identidade comum e o amor à república no Brasil. As consequências seriam a fragmentação e a inorganicidade dos corpos social e político da Nação, bem como os predomínios do rancor e do ressentimento como afetos sociais.
Theodor Adorno, em Teoria freudiana e o padrão de propaganda fascista (1949), argumenta que o modelo do pai tirânico incita os membros da comunidade política ao retorno às fantasias da infância nas quais há a crença, sem restrições, no poder de um pai soberano, um pai que pode ser, ao mesmo tempo, muito amado e muito temido, um pai que inspira uma confiança tão inabalável que promove a renúncia ao exercício da vontade própria.
Esta forma de autoridade que mobiliza o amor e o temor como armas políticas aparecem, segundo Adorno, nos momentos de crise, ou melhor, nos momentos de tensão referente à distribuição social dos bens materiais e simbólicos, bem como sobre as frustrações das expectativas dos pactos constituintes anteriormente firmados. Nesses momentos, há a instrumentalização dessa relação amor-temor, que deságua em uma série de frustrações, angústias e indignações moralistas. Diz Adorno que a decepção com um certo estado de coisas mais a crença de que o mundo da política é impregnado de sujeira e pecado, levam à valorização do pequeno grande homem: aquela pessoa que se apresenta como o homem comum, autêntico, que diz o que pensa, que não faz encenação. Este jogo de simulacros mobilizados por este homem, com aparência rústica e familiar, pretende responder às demandas afetivas de uma sociedade impotente, infantilizada, aflita e angustiada, que anseia por um pai protetor.
Diante do que aconteceu historicamente no contexto de Adorno e da pandemia, parece razoável dizer que estamos encarando uma escolha. Vamos nos manter seduzidos perante o temor reverencial sintetizado no modelo amor-temor que infantiliza os cidadãos, tornando o debate público irracional e violento? Ou vamos potencializar a solidariedade, que aposta no pacto de igual consideração, respeito e no atravessamento dos fantasmas dos complexos familiares?
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