ArtigoCiência Política

Dr. Simão Bacamarte e a inelegibilidade eleitoral

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Estava tomando o café da manhã tranquilamente, quando me deparei com a notícia de que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu que o prazo de inelegibilidades para as eleições municipais deste ano venceria em 7 de outubro de 2020 e não poderia ser prorrogado, mesmo em face ao adiamento do pleito para novembro, de acordo com a Emenda Constitucional 107 de 2020. Reagi com os intestinos:

— Malditos! Estão protegendo aqueles que foram condenados por abusar do poder em 2012. A prescrição da pena não deveria ser extinta em oito anos como determina a lei, mas deveria ser estendida aos candidatos da eleição de novembro de 2020.

Não sei bem se em razão dos incontáveis episódios de tormenta social e instabilidade política do cenário atual no Brasil – ou pela lembrança dos fantasmas de degola eleitoral da República Velha (1891-1930) –, mas, em um passe de mágica, várias figuras ilustres da Primeira República brasileira começaram a debater durante minha refeição matinal.

Ruy Barbosa argumentou:

— Bárbara, entenda-me. Para a condição de lisura dos processos eleitorais de uma nação ilustrada, acho fundamental que a boa política seja realizada por intermédio de procedimentos que garantam o devido processo legal. É evidente que são fundamentais os mecanismos de prevenção de ilicitudes, e é importante garantir que estes encontrem cada vez mais obstáculos para a realização do ideário do Estado de direito. Mas, diga-me, será que estender o prazo de inelegibilidade não fere este edifício constitucional de 1891? E também o de 1988? Pois não se trata de indulto a bandidos, mas de incorrer em mal maior: o de criar uma fábrica de ilicitudes controladas por um grupo que se coloque acima das leis.

De repente, Assis Brasil interrompeu:

— Meus caros, será que a Nação brasileira não precisa aprender a votar? E diria mais: não são os procedimentos eleitorais que devem assegurar a pedagogia cívica do povo? Daí que é importante deixar que a Nação tenha liberdade para votar nos maus governos. Senão, como ela aprenderá a votar e se organizar politicamente? Precisamos de intervenção. Entretanto, esta precisa garantir o aprendizado cívico, e não evitá-lo.

Do fundo da sala, levantou a voz o caudilhista gaúcho Borges de Medeiros, que, surpreendentemente, concordava com Assis Brasil e Ruy Barbosa. Alertou:

— É lógico que não pedimos para o povo raciocinar, já que é desprovido de identidade e incapaz de exprimir uma opinião acabada. Contudo, a tutela do povo vem das disputas legislativas. Somente o Legislativo que pode ter a ciência e a técnica adequadas para estender a inelegibilidade e as limitações ao direito de voto, que só poderia ocorrer por deliberação expressa do Congresso Nacional.

Ainda estava me refazendo da surpresa em torno do consenso entre liberais e positivistas, quando Alberto Torres ingressou na conversa:

— O eleitor brasileiro já é tutelado, faz tempo, pelo coronelismo, pelo mandonismo e pelo clientelismo. É ingenuidade moral acreditar que leis que incorporem o espírito e as ideias de outras nações, como a Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010, conhecida como “Lei da Ficha Limpa”, fosse valorizar inocentes e puros. O que ocorre é a utilização de litigância jurisdicional militante como arma nas disputas eleitorais, políticas e ideológicas, nas quais dossiês são produzidos para chantagem e extorsão.

— Concordo, Alberto – declarou Oliveira Viana. Sinto-me incomodado. Hoje, os liberais não possuem a oratória nem a lucidez de um Ruy Barbosa. Agora, os liberais estrangeirados são de uma decadência lastimável. Esta nossa elite é incapaz de produzir boas lideranças, pois elas não entendem mais o espírito da Nação. Infelizmente, falta-nos um Visconde de Uruguai, que compreendia a necessária organicidade do Estado. Precisamos é de ação política prudente e virtuosa, e não de fragmentação inorgânica. Sem vertebração política, a sociedade brasileira viverá em um grau perigoso de anomia e desagregação.

Mais surpreendente ainda, foi o surgimento de dr. Simão Bacamarte, que declarou em tom oracular:

— Bárbara, amiga, será que não estás olhando do ângulo errado o problema? Talvez a questão não seja o remédio, mas a diagnose. Será que a interpretação, que dura 130 anos, de passividade, ignorância e amorfismo do corpo social brasileiro, não teria transformado o pharmacon de remédio em veneno?

Entendi a mensagem. Não se pensam, nem, muito menos, se argumentam temas políticos com os intestinos. Isso já está prescrito desde a medicina hipocrática. 

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