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Eles sabem o que fazem!

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Com o apoio da Brazilian-American Chamber of Commerce (BACC), e a abertura do evento por Michel Temer, a Lide Brazil Conference foi reunida em New York semana passada, entre os dias 14 e 15 de novembro de 2022, reunindo “empresários, autoridades, investidores e jornalistas” [1]. O tema do primeiro dia do encontro era consagrado a “O Brasil e o respeito à liberdade e à democracia”, contando com a participação de vários ministros do Supremo Tribunal Federal. Na ocasião,o ministro do STF Dias Toffoli resolveu falar da nação argentina com as seguintes palavras: “País que ficou preso no passado, na vingança, no ódio e olhando para trás, no retrovisor sem conseguir se superar” e, continuou: “Nós não podemos nos deixar levar pelo que aconteceu na Argentina. Não vamos cair nesta situação em que infelizmente alguns vizinhos nossos caíram” [2].

Em coluna, o jornalista Mello Franco declarou que Toffoli, em seu discurso, foi “ofensivo” com os Argentinos, bem como “ignorante” a respeito do papel histórico importante da justiça de transição. Afinal, foi Argentina, e não o Brasil, que conseguiu condenar 1088 responsáveis por crimes contra a humanidade [3]. O histórico recente de Toffoli mostra que este momento infeliz nos Estados Unidos não era acidental. Em 2018, durante discurso em seminário sobre os 30 anos da Constituição de 1988, Toffoli se referiu ao golpe militar de 1964, como “o movimento de 1964”. Em setembro de 2018, Toffoli nomeou Fernando Azevedo e Silva, general da reserva, como seu assessor, no período em que esteve na presidência do tribunal. Uma indicação feita pelo general Villas Bôas, então comandante do Exército, que se declarava publicamente contrário à realização de eleições com o candidato Luiz Inácio Lula da Silva.

Vale lembrar que durante a Lide Brazil Conference, alguns ministros do STF foram vítimas de ataques por pessoas que solicitavam a demissão (ou morte) dos mesmos ministros, bem como a intervenção militar no Brasil.

Para além da indelicadeza com país vizinho e da falta de empatia com seus pares, o ministro Toffoli não deveria comentar publicamente o tema, pois ele é o relator da ação que questiona, no STF, a validade da Lei da Anistia no Brasil, promulgada em 1979. O processo está parado no tribunal há 11 anos e a declaração do ministro parece antecipar posicionamento processual.

Diante desses fatos, será que Mello Franco estava certo em falar da “ignorância histórica” de Toffoli?

Hoje há vasta literatura que mostra que após a segunda guerra mundial nada (ou muito pouco) havia se modificado daquela mentalidade militarista, antisemita e racista que serviu de base para o nazismo – apoiado, de forma entusiástica, pela maioria da população alemã. Os planos de desnazificação da Alemanha, mediante a apuração dos crimes cometidos pelos nazistas e o consequente expurgo de funcionários do aparato estatal, foram rapidamente engavetados à medida que o país se tornava o epicentro da Guerra Fria. Assim, muitos quadros do Estado, especialmente aqueles dos serviços de segurança; da Justiça e do Ministério Público; do serviço médico; e da rede de professores públicos que não só foram membros do Partido Nazista, mas, também da Sturmabteilung (SA) e da Schutzstaffel (SS), foram mantidos em seus postos, como comprovam recentes pesquisas históricas [4].

Somente com os processos de Auschwitz, em 1965, vinte anos depois, e por iniciativa de um teimoso procurador, os piores entre os guardas das SS em Auschwitz foram condenados [5], somando-se a poucas lideranças condenadas em Nuremberg.

Na Argentina, foi a Asociación Madres de La Plaza de Mayo que, diante do terrorismo de Estado instalado pela ditadura de 1976, lutou para que a justiça e a verdade fossem produzidas no caso dos sequestros, torturas e desaparições forçadas de seus filhos. No dia 10 de dezembro de 1977, Dia Internacional dos Direitos Humanos, as mães da associação publicaram um anúncio formal com os nomes dos desaparecidos. Em resposta, o governo sequestrou, torturou e assassinou as principais lideranças da associação: Azucena Villaflor e as freiras francesas Alice Domon e Léonie Duquet. O que chamou a atenção internacional para as manifestações das mães da praça de maio é que elas eram silenciosas, e utilizavam de lenços brancos, para lembrar das fraldas de seus filhos. A associação sempre lembrava do desejo de que justiça não fosse confundida com vingança e que se associasse à verdade e à restauração dos laços sociais perdidos graças ao trauma do terrorismo instalado pelas oligarquias e seus representantes políticos argentinos.

A associação nunca clamou pela morte dos sequestradores e seus parentes. Por que então o ministro Dias Toffoli falou de ódio e revanche em relação ao processo de justiça transicional na Argentina?

Psiquicamente, diante de eventos traumáticos, acionamos mecanismos de defesa para negar o trauma e o horror vividos, especialmente aqueles que não conseguimos traduzir em palavras. Esta é uma das razões da importância dos procedimentos testemunhais na justiça de transição. Tais procedimentos visam evitar o esquecimento produzido pela “amnésia coletiva” e a produção social da covardia. Por seus atos de coragem, as mães da praça de maio demonstram que, para lidar com os traumas coletivos causados pela brutalidade, é necessária a força coletiva da verdade e da memória. O esquecimento implica as ausências de responsabilização e punição dos principais atores dos crimes perpetrados, assim como dos observadores que “passivamente” participaram da construção da máquina de tortura e morte.

Nos regimes autoritários, busca-se normalizar a perversão. Isso serve para criminalizar os que têm a coragem da verdade, as que não se refugiam no esquecimento, os que apontam para a nudez do rei. E a normalização da perversão se alimenta da disseminação coletiva da covardia. É a construção deste afeto como calibrador que vai estabelecer o “bom-tom” das práticas sociais nos regimes autoritários. A coragem, por sua vez, será associada ao desconforto social. O corajoso é aproximado da insensatez. Por isso, é de bom-tom, diante da normalização da violência, se fingir de morto – ou que não viu (ou que não sabe). É de bom-tom não se envolver com aquilo que pode causar algum desconforto familiar (como o auxiliar do promotor no filme Argentina, 1985). Por isso, também é importante a justiça de transição. Para além da produção de restauração social da verdade e dos laços sociais esgarçados, é fundamental o resgate da coragem como virtude em contraponto a docilização dos corpos.

Recordemos que foram as oligarquias que implantaram um regime econômico-político neoliberal, radicalmente desigual, que financiaram o golpe de Estado na Argentina em 1976. As consolidações do regime através da impunidade judicial e da normalização social e política contribuíram para garantir essa docilização e a hierarquização valorativa dos corpos. E este mal nunca foi banal.

No Brasil, emergiu novamente o projeto de tornar a covardia um grande calibrador social. Nos últimos sete anos, este projeto tem prosperado. O discurso do ministro Toffoli cabe neste “caso de sucesso” quando tenta, sintomaticamente, inverter o que é virtude em vício, ou quando tenta camuflar o sentimento de humilhação e submissão que o covarde sente em relação às locas corajosas. Espero que ele lembre que essa covardia é o medo tornado virtude e que, desde Montesquieu, sabemos que tal afeto só alimenta o despotismo.


[1] https://www.lide.com.br/eventos/lide-brazil-conference-new-york. Acessado em 22 de novembro de 2022.

[2] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/11/fala-de-toffoli-sobre-punicoes-do-passado-e-alvo-de-questionamento.shtml. Acessado em 22 de novembro de 2022.

[3] https://oglobo.globo.com/blogs/bernardo-mello-franco/coluna/2022/11/toffoli-viu-o-filme-errado.ghtml. Acessado em 22 de novembro de 2022.

[4] Ver JUDT, Tony. A Punição In Pós-Guerra. Uma História da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, pp. 55-76 e TAUFER, Lutz. Atravessando Fronteiras. São Paulo: Autonomia Literária, 2018, pp. 52-72. Em conhecido caso a revista norteamericana New Republic em junho de 1945, informava que Friedrich Schauffer, governador da Baviera, apoio os nazistas e era um dos maiores oportunistas da República de Weimar.

[5] Muitos alemães encaravam o Tribunal Militar de Nuremberg para crimes de guerra não como ato de justiça mas de “vingança do vencedor”. A questão central da desnazificação envolvia a tensão entre EUA e URSS e por isso vários crimes de guerra foram esquecidos em nome da necessidade de integração rápida da economia alemã a Europa. Ver em GOLDSTEIN, Cora Sol. Iconoclasm and censorchip. In Capturing The German eye. University of Chicago Press, 2009.

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