Artigo

Em briga de elefante, quem sofre é o capim

Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Na semana em que o Brasil chegou à triste marca de 250 mil mortos em decorrência do covid-19, assistimos a Câmara dos Deputados passar uma semana inteira por conta da definição das prerrogativas dos próprios parlamentares em relação ao Judiciário. Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) apresentada, despachada e encaminhada a Plenário no mesmo dia levanta questionamentos acerca da morosidade em relação a todos os outros temas há tanto tempo parados, para os quais a explicação sempre recai sobre a lentidão natural do processo.

Nosso objetivo aqui não é tratar da pertinência ou do conteúdo da proposta, que nos parecem absolutamente insignificantes diante da questão do processo e da definição da agenda. Quando o Plenário da Câmara coloca no topo da pauta uma questão, é preciso que fique muito claro que ele está sinalizando considerar este o tema mais importante e digno de atenção do órgão máximo da representação democrática no Brasil. Ao escolher deliberadamente a PEC das prerrogativas, e não a mudança dos critérios para aprovação de vacinas emergenciais na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), portanto, o presidente da Câmara quer dizer que a pauta anterior requer atenção maior do parlamento. Assim, o presidente da Câmara escolhe direcionar diretamente ao Plenário uma PEC na semana de sua apresentação sem formação de comissão especial para apreciação do mérito, dando a entender que não se faz necessário escutar especialistas e cidadãos no processo de modificação da norma.

A Câmara tomou as dores do Legislativo, se sentindo lesado em relação ao Judiciário, que teria invadido sua função de julgar um dos seus, e os defensores da proposta encarnaram a própria democracia na defesa de suas prerrogativas e da inação da casa em processo de quebra de decoro. Aristides Lobo que me perdoe pela paráfrase, mas o Supremo, que por tanto tempo se contentou em assistir bestializado a inúmeras manifestações de desprezo pela democracia e suas instituições, também considerou fundamental e prioritário punir um parlamentar e provocar resposta do Congresso em momento de pandemia. O argumento para tanto, ela de novo, a democracia. Enquanto isso, o chefe do Executivo considerava fundamental vir a público para criticar o uso de máscara, uma das únicas formas que gozam de respaldo científico para mitigar os efeitos da propagação da doença.

De outro lado, as comissões parlamentares da Câmara continuam fechadas e sem planos para reabertura, ainda que haja regulamentação e tecnologia para a deliberação remota. A arena das comissões é o espaço possível para discussão dos temas com especialistas e representantes da sociedade e onde pode ser exercida a prerrogativa Legislativa de fiscalização do Executivo. São, além disso, os espaços onde as discussões temáticas em torno de políticas públicas se processam, nos quais poderia se estar qualificando o debate sobre o retorno das escolas ou fiscalização do desmatamento da Amazônia, por exemplo.

Tudo isso só faz lembrar da frase, de autoria duvidosa, que estava escrita na placa azul que ficava no alto do Centro Acadêmico, presa na pilastra de cimento queimado típica da arquitetura modernista da Universidade de Brasília. Ninguém sabia como tinha ido parar lá e não tinha origem em Platão, Maquiavel, Weber ou qualquer outro dos pilares da teoria política longamente estudados pelos alunos do curso de Ciência Política: “Em briga de elefante, quem sofre é o capim”. E quem leva a culpa é a democracia.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.