Artigo

Era uma vez o País do futuro

Hayle Melim Gadelha
é doutor em relações internacionais pelo King’s College London e diplomata. Suas opiniões pessoais não refletem a posição oficial do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
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Hayle Melim Gadelha
é doutor em relações internacionais pelo King’s College London e diplomata. Suas opiniões pessoais não refletem a posição oficial do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.

Nós, brasileiros, gostamos da fábula segundo a qual gozamos de especial simpatia mundo afora. Teríamos, diz o senso comum, reservas de soft power – capacidade de persuasão – superiores aos recursos clássicos de poder coercitivo. As expressões culturais, alegria e diversidade garantiriam ao País legitimidade internacional. Esperávamos que essas excepcionalidades realizassem, como sugeriu Vinicius de Carvalho na última edição desta revista, a alcunha profética de país do futuro.

Um breve olhar para as evidências despedaça o espelho distorcido que reflete a potência branda do amanhã. Se não, vejamos. Possuímos, graças à diplomacia, o 5º território mais extenso do planeta. Nossa população, a 6ª maior, é hoje a 12ª produtora de riquezas (apenas uma década depois de ocuparmos a 6ª posição mundial também em termos econômicos). De acordo com ranking publicado pela Global Firepower, o Brasil subiu ao 10º posto em poderio militar.

Já a difícil mensuração do chamado soft power aponta para patamares modestos, quando comparados aos ativos tradicionais. Se, há poucos anos, parecia questão de tempo o ingresso nas listas dos 20 países mais influentes, atualmente, o Brasil não figura sequer entre os 30 detentores dessa modalidade de poder. Ou seja, nosso prestígio é uma miragem; não somos atraentes aos olhos estrangeiros, nossas tropas e nosso dinheiro sobrelevam nossos valores e nossa cultura.

A recente imagem de liderança em meio ambiente, direitos humanos e desenvolvimento é ofuscada por associações de destruição ambiental, violência e desigualdade. Os êxitos das conferências do clima, do combate à fome e dos eventos esportivos deram lugar a manchetes sobre desmatamento, mortandade pela Covid-19 e recrudescimento da pobreza. A marca do País, e com ela nossa economia e capacidade de influir nos destinos da humanidade, sofre pelo descompasso entre a pauta doméstica e as prioridades da comunidade de nações e pela deficiente comunicação com o público externo. Da reputação do Brasil, por sua vez, dependem o influxo de investimentos, turistas e estudantes, o comércio exterior e o valor percebido nos produtos nacionais, a participação nos debates multilaterais e o tratamento dispensado a compatriotas.

Para que o País supere esses passivos e projete influência além de suas dimensões naturais, urgem correções de rumos e uma concepção atualizada de comunicação. Em uma sociedade organizada em redes, na qual o Estado divide o sistema internacional com novos atores, tão importante quanto relacionar-se com governos é interagir com a opinião pública. O Itamaraty, com sua longa folha de serviços prestados ao Brasil, reúne as condições para liderar os esforços de inventariar nosso capital de poder brando, deliberar o grau de influência e que investimentos estamos dispostos a assumir e definir a imagem do País. Nossa ampla rede diplomática deve projetar essa imagem por meio de mensagens atraentes, autênticas e adequadas a cada audiência, considerando suas especificidades e visões prévias do Brasil.

Uma efetiva promoção da imagem nacional deve ter lastro na realidade, sintetizar um consenso social e guardar horizonte que extrapola ciclos eleitorais. Somente um fluxo planejado e consistente de ideias e políticas pode gradualmente mitigar percepções negativas e reforçar atributos positivos do País. Exigem-se, para tanto, investimentos e articulação em alto nível, mas os retornos, financeiros e em influência global, serão extraordinários, como revelam as experiências dos Estados que apostaram na diplomacia pública e expandiram seu soft power.

Se o Brasil ficar para trás, a ilusão de País do futuro, aliás criada pela ótica estrangeira, cederá caminho não à construção do presente, mas ao enorme passado pela frente que antevia Millôr Fernandes. Seria um desastre para os brasileiros, que deixamos de reverter oportunidades externas em recuperação econômica e bem-estar; e para os demais, que prescindiriam de nossa contribuição para um mundo sustentável, equilibrado e generoso. Perderiam, quando menos, o otimismo imotivado dos que acreditam em finais felizes e no tratamento da diplomacia pública como uma política de Estado, com efeito multiplicador sobre o desenvolvimento nacional.

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