Artigo

Esplanada cheia, Plenário vazio

Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Não são poucos os dilemas e idiossincrasias que caracterizam a associação da democracia, que tem a igualdade como base; e a representação, que se fundamenta num sistema aristocrático e no princípio da distinção, isto é, a ideia de que os eleitos devem ser socialmente superiores aos eleitores. Em outras palavras, o método eleitoral seria baseado no princípio aristocrático. O método de seleção mais adequado para selecionar governantes num sistema baseado na igualdade seria um que desse a cada um dos cidadãos igual probabilidade de se tornarem lideranças. A forma encontrada pelos gregos para considerar a todos igualmente foi o sorteio. Na democracia grega, todos os cidadãos atenienses tinham igual direito a voz e a voto e idêntica probabilidade de serem sorteados para a gestão das coisas da Cidade.

Se o princípio da distinção tende a gerar diferentes “categorias de cidadãos” entre eleitores e eleitos, a tendência acompanha também a forma como se divide o poder dentro da maior Casa legislativa de nosso país, a Câmara dos Deputados. Algumas mudanças regimentais necessárias e urgentes durante o primeiro ano de pandemia foram institucionalizadas e podem resultar numa maior centralização do processo decisório e numa flexibilização das atribuições dos deputados. A primeira delas é o adiamento da formação das comissões permanentes e temporárias, provável consequência da incerteza gerada pela famigerada janela de mudança partidária e extensão do prazo para constituição de federações partidárias. A segunda é a vergonhosa suspensão da votação presencial para deputados, tanto no Plenário quanto nas comissões temporárias que estão em funcionamento.

Os trabalhos presenciais, que estavam previstos para voltar na segunda-feira, 7 de março, foram flexibilizados numa edição extraordinária do diário da Câmara dos Deputados publicado no sábado (!), 5 de março. O Ato criou ainda uma distinção entre o parlamentar presente na Casa e o que acompanha a sessão no modo remoto: somente poderão participar dos debates os parlamentares presentes. Ora, se a justificativa formal para a manutenção dos trabalhos remotos é a saúde dos parlamentares, servidores e demais agentes que atuam no Congresso, não é razoável punir aqueles parlamentares que não estão presente na Casa. Essa questão se agrava porque o tempo e esforço para acessar o parlamento presencialmente não é igualmente dividido pelos parlamentares: é mais fácil para um deputado do DF acessar as dependências físicas do Congresso do que para um deputado do Pará, por exemplo.

A diferença criada pela nova regulamentação tem repercussões graves uma vez que restringe o direito a voz de alguns participantes do colegiado, seja ele o Plenário ou alguma das comissões. Até então, o único espaço em que havia restrição de direito a voz era o Plenário em determinados momentos, quando a palavra se reserva às lideranças e o tempo de fala respeita a proporcionalidade do grupo que representa, isto é, o tamanho do partido ou bloco. A restrição do direito a voz de um grupo de parlamentares dentre os quais o custo de acessar o parlamento é desigualmente distribuído resulta numa sub-representação do eleitorado de determinas regiões e estados.

Porém, mais grave do que a restrição da fala de um grupo de parlamentares é a restrição do acesso da sociedade civil ao processo decisório que decorre da ausência de discussão e da realização remota dos trabalhos. O primeiro exemplo emblemático ocorreu essa semana, quando uma parcela relevante da sociedade civil, na expectativa da volta dos trabalhos presenciais, realizou um ato pacífico contrário à liberação da mineração em terras indígenas. Em outros tempos, os parlamentares teriam presenciado a manifestação pelas janelas de seus gabinetes ou dos espaços de passagem e convivência, que Oscar Niemeyer chamou de salões. A maior parte dos parlamentares não estava em Brasília e sim nos estados lidando com as negociações da janela partidária e, numa votação remota e com pouco debate foi aprovada a urgência do projeto em questão.

Nem só de voto vive uma democracia. Não há justificativa possível para reduzir o direito à voz no âmbito de um sistema político em que os cidadãos elegem representantes, seja a voz de parlamentares, seja a da sociedade civil. A Câmara dos Deputados precisa retomar seu apreço pela democracia.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.

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