ArtigoCiência Política

Estados Desunidos da América

Paulo Peres
Especialista em análise institucional, instituições políticas brasileiras, partidos e eleições. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Paulo Peres
Especialista em análise institucional, instituições políticas brasileiras, partidos e eleições. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Segundo a lenda, Filipe II, da Macedônia – pai de ninguém menos do que Alexandre, o Grande – teria sido o criador da máxima que se tornaria uma das maiores artimanhas da ciência da guerra: “Divide e governa”. Como estratégia militar, ao que parece, este princípio já era bastante difundido à época e sempre se mostrou eficaz, desde Júlio César, no Império Romano, passando por Napoleão Bonaparte, até as atuais “guerras híbridas”. Obviamente, o que vale para a guerra, vale para a política; ou seja, os políticos também podem “dividir” para conquistar e para governar.

Sabedores intuitivos desse princípio, os líderes populares – alguns deles, populistas – costumam recorrer a um antídoto que também se mostrou infalível para resistir à opressão e depor governantes: “O povo, unido, jamais será vencido”. De fato, se dividir o inimigo favorece tanto a conquista como a sua dominação para resistir ao ataque e avançar, a unidade é primordial. O próprio exército imperial romano, a mais temida e duradoura força militar, tinha como uma de suas principais táticas o ataque em linhas com formações compactadas de escudos para se lançar em bloco contra os inimigos. A palavra de ordem era “manter a formação”.

Entretanto, as estratégias de dividir e unificar impõem um paradoxo. Por um lado, a desorganização da maioria pode favorecer o predomínio de uma minoria abusiva; por outro, a organização da maioria não necessariamente implica a formação de um governo que respeite os direitos individuais, não oprimindo as minorias – basta lembrar do fascismo, cujo símbolo, não por acaso, remetia à junção de varas isoladas, logo, quebrantáveis, num feixe altamente resistente. Portanto, se a sociedade fraturada pode ensejar ditaduras oligárquicas, da maioria unificada podem brotar tiranias populistas.

O arranjo institucional das democracias liberais evoluiu em reação a este paradoxo. Arregimentada em processos eleitorais, a maioria escolhe os seus representantes para operar uma estrutura de poder dividido, cuja organização consiste num sistema de controles mútuos. Não obstante, como mostram diversos exemplos históricos, este modelo não é plenamente imune aos efeitos nocivos da estratégia de “dividir para governar”. Donald Trump é um caso paradigmático deste processo deletério.

Arrogando para si a capacidade de fiel intérprete da “vontade da maioria” para restaurar o “paraíso perdido” da “Grande América”, Trump semeou o populismo no solo de uma democracia que se julgava imune às aventuras “terceiro-mundistas”. Levada ao extremo, a polarização dos valores deu vazão a “conspiranoias”, simplificações, preconceitos e agressões. Insurgente contra as instituições que limitam o poder; prometeu a “verdadeira democracia”, aquela que dá voz e organização à suposta “vontade da maioria”; deu esperanças ao “cidadão comum”, “deixado para trás” pelos políticos negligentes, pelo “sistema corrompido”, pelos “intelectuais elitistas”, pelas blasfêmias científicas e pela imprensa manipuladora.

Trump dividiu e conquistou. Já no governo, engajou-se no confronto gratuito para manter a sociedade em estado de beligerância. Declarações bombásticas frequentes, indisfarçável desprezo pelas oposições e bullying sem tréguas contra as minorias e os seus adversários deram a tônica do seu dia a dia na Casa Branca e, principalmente, no Twitter – seu palco político preferido. Trump ameaçou o constitucionalismo e promoveu a dissolução do consenso básico que mantém em pé as sociedades pluralistas. Trump governou como um “Divider-and-Chief”.

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