Stuart Mill em As considerações sobre o governo representativo, de 1861, se queixa de as assembleias representativas serem acusadas de sede de “verbiagem e tagarelice”. Segundo o filósofo, não haveria uma zombaria mais mal aplicada. Para ele, a maneira mais útil de se empregar o tempo seria a conversa sobre os grandes interesses públicos, principalmente num lugar em que cada interesse ou sombra de opinião poderia ter a sua causa defendida, e que todos seriam obrigados a ouvir.
A democracia foi assim pensada para ser espaço de colocação de ideias e de construção de debates, onde deságuam os conflitos e são travadas disputas entre as várias visões de mundo.
Desde a ágora grega, cidadãos se encontram para debater os assuntos da pólis. Nos modernos, o lugar para os debates eram as assembleias representativas. No último século, os institucionalistas, os participacionistas e os deliberacionistas se dedicaram à discussão da necessidade de múltiplos espaços para os encontros das perspectivas, fazendo, assim, com que resquícios de um Estado hobbesiano fossem eliminados, fazendo a democracia o seu papel na domesticação dos conflitos, como apontou Chantal Mouffe.
Mas e quando as fake news são escaladas para o jogo? E quando a desinformação vira parte do cotidiano? As resultantes são o desgaste do laço cívico que une a sociedade e a consequente erosão da própria democracia.
As notícias falsas, em seus três tipos – informação incorreta (imprecisa, que não necessariamente tem por objetivo causar dano), má informação (sigilosa e revelada para causar dano) e desinformação (sabidamente falsa e revelada também com o intuito de causar dano) –, ativam uma força centrífuga societal, empurrando indivíduos para extremos. Neste lugar para onde os cidadãos são defenestrados, a impressão coletiva é de que não há possibilidade alguma da construção de debate com o pensamento diferente.
A problemática ganha escala quando se coloca no cálculo o uso da internet. Isso porque a rede tem sido utilizada tanto para o espalhamento rápido de fake news, quanto para a modulação dos conteúdos e a estruturação de desinformação personalizada. A resultante é o bombardeamento de notícias falsas que atingem pontos reais de preocupação daquele indivíduo. Outras questões são forjadas artificialmente, questões essas que, a priori, nem se configuravam como preocupações para a sociedade e que são inseridas no debate com o objetivo de insuflar o engajamento em falsas polêmicas. A “cereja do bolo” da desdemocratização são as teorias de pós-verdade, conspiratórias e de revisionismo histórico que levam para polos cada vez mais distantes os cidadãos.
Neste processo, a consequência-fim é um agigantamento do antagonismo, no qual quem pensa diferente, não importa quem ele seja e o quão próximo e querido ele já foi, se transforma no inimigo a ser combatido.
Se “não há nada que o homem mais tema que o contato com o desconhecido”, como apontou Elias Canetti, parece que é exatamente este inconsciente rudimentar que as fake news tocam.
Como o cidadão poderá libertar-se do temor do contato? Segundo o próprio Canetti, “é da massa densa que se precisa para tanto”. Assim, torna-se necessário uma legislação dura acerca das fake news e a retomada urgente do contato democrático entre os múltiplos pensamentos.
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