Todo mundo é a favor de que o Estado use recursos do orçamento para elaborar estudos de tráfego, planejar, criar ruas, asfaltar vias, pintar meios-fios e fazer sinalização, além de colocar placas de trânsito e instalar semáforos. Tudo pago com dinheiro público para organizar o fluxo das pessoas nas cidades. Contudo, quando se fala em tarifa zero no transporte coletivo, logo surgem vozes contrárias que alegam não ser possível o passe livre por falta de fontes de financiamento.
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, por exemplo, disse que “não existe almoço de graça” para justificar o reajuste para R$ 5 nas passagens do metrô e dos trens, justamente quando ganha força a proposta de tarifa zero. No entanto, ele finge desconhecer que a questão central não é a gratuidade, mas saber quem paga e quem se beneficia. Isso acontece porque implantar, manter, melhorar e fiscalizar o sistema viário é muito mais caro do que implantar e manter o passe livre.
Importante frisar que todo o sistema é organizado para privilegiar o transporte individual. Isso é bastante claro quando nos damos conta de que os ônibus não trafegam na maioria das vias das cidades ou quando comparamos a quantidade de faixas destinadas aos ônibus em relação aos carros. As ruas costumam ter o dobro da largura necessária para o tráfego apenas para garantir espaço de estacionamento aos automóveis. Além disso, os carros pequenos costumam ter mais de quatro metros de comprimento e uma ocupação média inferior a 1,5 passageiro. Já um ônibus articulado costuma medir 20 metros e carrega 120 passageiros. Assim, os carros transportam menos de 10% da quantidade de pessoas no mesmo espaço de uso do viário público. O privilégio ao transporte individual impacta a sociedade não só no orçamento destinado às vias públicas, mas também nos congestionamentos e em suas consequências para a economia, o gasto de saúde e a qualidade de vida nas cidades.
O Estado arca com esses custos por meio dos impostos arrecadados entre toda a população, inclusive os que não têm carro, para beneficiar especialmente os que têm (a parcela mais rica da população). Para corrigir essa distorção, está em debate, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 25/2023, de autoria da deputada Luiza Erundina (Psol/SP), com apoio de mais de 170 parlamentares e relatoria do deputado Kiko Celeguim (PT/SP), que institui mecanismos para inserir as cidades brasileiras em outro patamar de mobilidade e, ao mesmo tempo, promover a justiça social.
Pela proposta, o direito ao transporte (dever do Estado) fica assegurado com a criação do Sistema Único de Mobilidade (SUM), regido pelos princípios da universalidade, da gratuidade, da descentralização e da cooperação, além de planejamento integral e participação social. Uma parte dos recursos para financiar o SUM, a ser definida em lei e considerando a realidade de cada cidade e região, viria de impostos e taxas de União, Estados, Distrito Federal e municípios. A PEC em questão autoriza Estados e municípios a instituir a Contribuição pelo Uso do Sistema Viário (Conusv), com o objetivo de custear o serviço e fazer justiça social no uso das vias públicas. Em linhas gerais, a contribuição viria de proprietários de veículos automotores pelo uso potencial ou efetivo do sistema viário.
Vale destacar que não se trata de uma obrigação, mas de uma autorização para Estados e municípios instituírem a cobrança. Nada mais justo do que cobrar de quem se beneficia individualmente do sistema, num modelo que estimula a mobilidade a partir do transporte coletivo. Essa regra já existe em vários países desenvolvidos. Estimativa feita para a cidade de São Paulo, a maior do País, considera que metade do sistema hoje já é subsidiado pelos cofres públicos, enquanto a outra metade dos recursos viria da cobrança diária de R$ 1 a R$ 3 por veículo. É um valor módico ante à miríade de vantagens que toda a sociedade recebe com a tarifa zero.
Nas cerca de cem cidades que implantaram a tarifa zero no Brasil, o número de passageiros transportados cresceu, com a demanda pelo transporte duplicando — e até triplicando. Um exemplo fresco está em São Paulo: segundo a prefeitura, o primeiro domingo de passe livre registrou alta de 35% no volume de pessoas transportadas, o que representou cerca de 700 mil passageiros a mais que nos domingos anteriores. O mesmo comportamento se deu em outras cidades, prova de que há muitos cidadãos e cidadãs que não se locomovem adequadamente em razão da tarifa cobrada. Além disso, a gratuidade tem o potencial de reduzir a quantidade de veículos nas vias e melhorar a qualidade do transporte público, mediante a redução do intervalo entre os ônibus. O aumento do número de pessoas em circulação estimula e dinamiza a economia, bem como permite que pessoas de baixa renda tenham mais condições de comparecer a eventos culturais ou a consultas médicas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
O estímulo à economia tem sido um fator crucial para diversas associações comerciais no Brasil apoiarem o passe livre, pois os negócios cresceram nas cidades que adotam a tarifa zero, seja em todos os dias, seja em datas específicas. Por isso, a PEC 25/2023 é um marco importante, que conduz a mobilidade para o centro do debate, transforma um direito formal em direito material e une esforços das várias esferas para um sistema integrado e justo, valorizando o bem-estar e a justiça social.
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