A fome é, indiscutivelmente, um dos problemas mais urgentes a serem resolvidos no atual contexto nacional. Mais de 33 milhões de brasileiros são afetados por algum nível de insegurança alimentar, segundo dados do último Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan). Estudos recentes dessa mesma rede e do grupo de pesquisa Sociologia das Práticas Alimentares (Sopas), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atualizam as reflexões acerca do tema — e destacam a importância de partir de experiências do pequeno agricultor e das mulheres negras para formular políticas públicas consistentes.
No primeiro estudo, publicado na revista Cadernos de Saúde Pública, pesquisadores da Penssan contextualizam a gravidade do cenário da fome no País, com base nos dados do Inquérito Nacional divulgado em 2021: no primeiro ano de pandemia de covid-19, vimos a taxa de insegurança alimentar no Brasil aumentar em 72%. Isso significa que, em 2021, a maioria das casas brasileiras enfrentava algum tipo de insegurança alimentar, seja na sua forma mais leve (de preocupação dos chefes da família de não conseguir obter alimentos), seja na sua forma mais grave (de falta de alimentos no domicílio).
A possibilidade de ofertar comida mais barato direto do pequeno produtor seria uma saída viável para mitigar a fome. A agricultura familiar já é responsável por produzir 70% dos alimentos consumidos pela população brasileira, segundo o último Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Por isso, os pesquisadores da Rede Penssan sinalizam que uma política pública interessante para o setor seria o investimento nessa atividade. Essa política poderia vir junto com a promoção da Reforma Agrária, o fortalecimento de práticas agroecológicas e a restrição do uso de agrotóxicos.
No contexto do governo empossado em janeiro deste ano, é preciso tomar cuidado para formular projetos condizentes com os atuais cenários econômico e social do País. “O Brasil é outro, não é o mesmo de 2013, quando saiu do mapa da fome da Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO), da ONU”, explica Veruska Prado, pesquisadora na Universidade Federal de Goiás (UFG), membro da Penssan e uma das autoras do artigo. Incentivar práticas agrícolas que forneçam alimentos para a população seria extremamente importante. “Antes de alimentar o mundo, temos que alimentar bem os nossos”, pontua.
O artigo ressalta a velocidade do aumento nos números da insegurança alimentar ao longo dos anos. Isso, segundo Veruska, pode ser explicado, por um lado, pela negligência da última gestão do governo federal diante do direito humano à alimentação. Por outro, houve também a intensificação da crise econômica com a pandemia da covid-19, diminuindo o poder de compra das famílias. Desde julho de 2020, o valor repassado pelos programas de transferência de renda durante a crise sanitária foi insuficiente para evitar que a insegurança alimentar se agravasse no Brasil, avaliam os cientistas.
No âmbito político, desde 2016, políticas públicas de promoção às seguranças alimentar e nutricional foram enfraquecidas ou eliminadas, por meio de perda de orçamento. Um dos exemplos citados é o fechamento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) em 2019, retomado neste primeiro ano de governo Lula. O estudo aponta que o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), única política de seguranças alimentar e nutricional continuada nos últimos quatro anos, teve dificuldades em manter a qualidade, pois o orçamento não passava por reajustes desde 2017. Diante do aumento dos custos dos alimentos, o programa precisou optar por fornecer itens mais baratos na refeição escolar. Em 2023, vemos uma esperança de fortalecimento do Pnae com o anúncio de um reajuste de 39% no orçamento. Ao longo deste ano, os R$ 5,5 bilhões destinados ao programa servirão para alimentar cerca de 40 milhões de estudantes da educação básica pública brasileira.
Na reconstrução de políticas, é importante olhar para a experiência de mulheres negras — as mais afetadas pelos obstáculos de acesso a alimentos de qualidade. Essa consideração faz parte de um relatório do grupo Sopas, divulgado pela BORI, que olha para os recortes de raça, cor e gênero das inseguranças alimentar e nutricional no Brasil. São mulheres de baixa renda, com menor grau de escolaridade (chefes de família) que veem o poder de compra e o acesso a comida de qualidade diminuírem nos últimos anos.
É necessário que as políticas públicas brasileiras sobre seguranças alimentar e nutricional sejam reconstruídas — e pequenos produtores e mulheres negras são atores-chave nesse processo.
Arthur Saldanha, pesquisador que assina o documento, destaca que o ativismo dessas mulheres pode ajudar a construir políticas públicas para enfrentar essas questões, levando em consideração as desigualdades. “A aproximação do Poder Público com as iniciativas alimentares locais, como movimentos sociais, organizações e articulações de mulheres negras, permitirá um mapeamento mais preciso sobre as demandas dessas pessoas e, consequentemente, uma formulação de política pública alimentar mais assertiva a esse grupo”, destaca Saldanha.
Outro aspecto que chama a atenção do autor é o fato de as mobilizações de mulheres negras frequentemente se dedicarem a demandas de outros grupos sociais, como indígenas, populações tradicionais e comunidade LGBTQIAPN+. Uma vulnerabilidade lança, então, luz sobre outras, revelando os problemas sociais que ainda precisamos resolver enquanto sociedade.
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