Yanis Varoufakis, ex-ministro da Economia da Grécia, disse recentemente à imprensa que a dívida é para o capitalismo o que o inferno é para o cristianismo. A declaração denuncia a maneira como a troika — as três instituições que emprestaram dinheiro à Grécia na crise financeira do país (Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional e Banco Central Europeu) — utiliza a dívida como estratégia de controle político dos países europeus e suas populações. No Velho Mundo, essas três instituições têm um peso decisional descomunal se comparado ao Parlamento Europeu eleito, que será renovado em junho 2024, demonstrando a submissão da soberania popular em detrimento de decisões tecnocráticas que favorecem, eleitoralmente, a hegemonia política da direita no continente. Nesse modelo de “soberania antidemocrática ou tecnocrática”, fundada nas supostas “leis naturais do mercado”, a dívida pública e seu controle representam uma nova técnica governamental de controle das vidas e dos corpos. Sem nunca ser deliberada politicamente, a dívida integra uma “arte de governar” específica, uma governamentalidade de controle e de normalização, que não funciona mais com base na disciplina do trabalho em fábricas, hospitais, prisões e escolas.
Dito isso, o brasileiro já nasce devendo em torno de R$ 27 mil da dívida pública, afirma Carmen Bressane, advogada da Auditoria Cidadã da Dívida (ACD) do núcleo São Paulo. Na França, os bebês nascem devendo € 22 mil, diz o filósofo italiano Mauricio Lazzarato. Segundo ele, a governamentalidade neoliberal (atual) está fundamentalmente construída na base da dívida. Você nasce endividado e morre endividado, tanto individual como coletivamente. Ademais, a arte de governar pela dívida implica uma desterritorialização, ou seja, a dívida não respeita fronteiras territoriais. É soberana e imperial, instituindo um conjunto de regras que reproduzem as práticas de violência que remetem aos estágios mais primitivos do capitalismo, período que chamamos de acumulação primitiva. A governamentalidade da dívida funciona, nesse sentido, como forma de poder para explorar e expropriar a vitalidade social e determinar o tempo futuro. Faz parte do pacote teológico-moral da financeirização do capital, pois visa se contrapor ao protagonismo político dos movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos, da luta feminista na Europa e dos movimentos pela libertação nacional na América Latina e na África, no fim dos anos 1960 e início dos 1970, os quais puseram em risco os mecanismos que garantem a reprodução dessa forma de acúmulo do capital.
A teologia do domínio combina bem com essa apropriação do tempo da dívida. Se, antes, o usurário ou agiota era considerado ladrão do tempo de Deus, hoje é considerado o dono do tempo do valor agregado que diz produzir, mas que advém do roubo que promove pela apropriação do que os outros produzem. Assim, a dívida se torna princípio que institui valor e se torna o axioma mais abstrato de organização das relações sociais, desempenhando a função cumprida pela Cidade de Deus no cristianismo medieval. Importante também perceber que a dívida vai penetrando na vida cotidiana e nas economias populares e informais, conquistando e organizando, a partir da lógica, o espaço da reprodução social e capturando o desejo presente nessas economias. A sucessão de crises financeiras levou ao aparecimento de uma figura subjetiva que, agora, ocupa todo o espaço público: a do homem endividado. Pois o fenômeno da dívida não se reduz às suas manifestações econômicas, mas se constitui como a pedra angular das relações sociais em regime neoliberal, operando uma tripla desapropriação: a desapropriação da soberania popular na democracia representativa; a desapropriação da riqueza que as lutas sociais passadas tinham arrancado da acumulação capitalista; e, principalmente, a desapropriação do futuro como campo de possibilidades, consagrada numa governança supostamente racional, porque tecnocrática e “apolítica”.
Essa estratégia, baseada na verticalização da dívida, requer que abandonemos a subjetivação da economia clássica, do homem que realiza trocas e do homem que produz para melhor nos adequarmos à figura do empreendedor de si mesmo. Assim, ativou-se a figura do “homem endividado” para designar as novas formas de divisão social do trabalho. Essa figura metamorfoseia todas as anteriores em consumidor endividado, usuário endividado e, por fim (como está acontecendo na Grécia), em cidadão endividado. Se não é a dívida individual, é a dívida pública que, de fato, pesa na vida de cada um — já que cada um deve assumi-la. A expansão dessa estratégia do “homem endividado” pode ser sentida especialmente nos trabalhos considerados específicos de reprodução social, nos quais há um duplo movimento. Primeiro, busca-se, supostamente, “empoderar” os sujeitos que realizam o trabalho de reprodução social, transformando-os em empreendedores pelo endividamento. Segundo, a estratégia visa à destruição das políticas sociais que garantiam a reprodução social fora do mercado. Agora, a reprodução social em si mesma depende da dívida e do sistema financeiro.
Silvia Federici e Verónica Gago chamam de neoextrativismo colonial essa tática de expansão da dívida nos espaços de reprodução social onde as populações mais empobrecidas e precarizadas são obrigadas a se submeterem ao dispositivo da dívida para garantir a existência cotidiana. A ideia é converter essa dívida em uma soma de dívidas constantes e sem temporalidade finita: uma nova forma de extrativismo colonial, um novo aviamento. A ideia-força é que não nos resta outra opção para viver senão nos endividarmos, e que como horizonte temporal temos que pagar as dívidas até morrer. A dívida, então, se torna uma força de produção, uma forma de extração de valor sem necessidade de mediação salarial. A soberania da dívida é ferramenta de apropriação dos nossos tempos presente e futuro, obrigando-nos a trabalhar cada vez mais — e ainda nos sentindo culpados se não pagarmos uma dívida impagável. Ademais, diante da ausência de políticas que garantam a reprodução social e que assegurem a reexistência de famílias e comunidades, estas estão obrigadas a depender dos bancos, mercantilizando, dessa maneira, cada aspecto das próprias vidas.
A questão que apontam os mesmos movimentos que tentam ser calados desde fim da década de 1970 é indicar quem são os verdadeiros devedores e credores da dívida em relação ao que é produzido e apropriado via guerra, saque, pilhagem e roubo. Quem deve a quem? A dívida, então, tem de ocupar um novo confronto estratégico do governo de si e dos outros. Os governados devem se reconverter em credores daqueles que sempre promoveram a pilhagem e o saque sobre os seus corpos.
O primeiro passo é reconhecer que essa pilhagem sempre existiu — e se apresenta, hoje, sob nova roupagem. O segundo passo é assumir, fenomenologicamente, que essa violência é ilegítima, injustificada e dispõe de dispositivos comunicacionais e tecnológicos de submissão e obediência. Por fim, o terceiro passo é compreender que são aquelas que garantem a vida, a soberania alimentar e a defesa dos bens que não podem ser mercantilizados as verdadeiras credoras do mundo. São elas e suas práticas que devem ser valorizadas em termos morais e orçamentários. Importante é lembrar o ditado popular: “Se você deve ao banco US$ 100 mil, o banco controla você. Se você deve US$ 100 milhões, você controla o banco”.
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