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Forças Armadas 2.0: o golpe será “twittervisionado”?

Raquel de Souza
Graduanda em Ciências Sociais e membro do Politik (Centro de Estudos em Instituições, Participação e Cultura Politica — Univasf).
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Raquel de Souza
Graduanda em Ciências Sociais e membro do Politik (Centro de Estudos em Instituições, Participação e Cultura Politica — Univasf).

Em 3 de abril de 2018, um ar de tensão pairava no Brasil. Todas e todos nós, independentemente da ideologia política perseguida, esperávamos a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o pedido que poderia impedir a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nesse mesmo dia, o dito “moderado” General Eduardo Dias da Costa Villas Bôas escreveu no seu perfil do Twitter duas mensagens:

“Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”.

“Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.

Após essa manifestação, uma enxurrada de respostas de militares em apoio à sua fala apareceram na referida rede social. 

O General Cristiano Pinto Sampaio, da 16ª Brigada de Infantaria de Selva (no Amazonas), citou em tweet a figura de Gustavo Barroso, porta-voz da Ação Integralista Brasileira, dizendo: “Como disse o consagrado historiador Gustavo Barroso: ‘Todos nós passamos. O Brasil fica. Todos nós desaparecemos. O Brasil fica. O Brasil é eterno. E o Exército deve ser o guardião vigilante da eternidade do Brasil’. Sempre prontos, Comandante!”. Já o General Miotto, do Comando Militar da Amazônia, disse: “Estamos firmes e leais ao nosso comandante! Brasil acima de tudo! Aço!”. O General Dias Freitas, do Comando Militar do Oeste à época, tweetou: “Mais uma vez o Comandante do Exército expressa as preocupações e anseios dos cidadãos brasileiros que vestem fardas. Estamos juntos, Comandante General Villas Bôas!”.O chefe do Estado-Maior do Comando Militar da Amazônia, General Edson Skora Rosty, respondeu: “Estamos juntos, Comandante Selva”.

Naquele momento, estávamos no governo de Michel Temer, e o Ministério da Defesa, sob o comando de Raul Jungmann, soltou nota dizendo que o comandante do Exército “mantém a coerência e o equilíbrio demonstrados em toda sua gestão, reafirmando o compromisso da Força Terrestre com os preceitos constitucionais, sem jamais esquecer a origem de seus quadros que é o povo brasileiro”. Ainda, que “[O general] manifesta sua preocupação com os valores e com o legado que queremos deixar para as futuras gerações. É uma mensagem de confiança e estímulo à concórdia”.

Ali, víamos o que parecia ser uma amnésia coletiva em relação ao Decreto 4.346, de agosto de 2002, assinado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, que era taxativo sobre a proibição de “manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária”. Até o Comandante da Aeronáutica à época, o tenente-brigadeiro Nivaldo Luiz Rossato, soltou uma nota dizendo que “os Poderes constituídos sabem de suas responsabilidades perante a nação e devemos acreditar neles. Tentar impor nossa vontade ou de outrem é o que menos precisamos neste momento”.

Enfim, quatro dias depois, Lula seria preso, e aqueles tweets acintosos com ameaças ao STF só seriam respondidos em 2021, quando o Supremo discutia a pressão de militares sobre o Poder Judiciário. E, mais uma vez, o General Villas Bôas mostrava que a temperança estava longe de ser um adjetivo que se podia dar a ele e tweetou ironicamente: “Três anos depois”. Até pode-se pensar: “Mas esse foi um comportamento isolado, uma opinião pessoal de Villas Bôas”. Não, não foi bem assim. No livro General Villas Bôas: conversa com o comandante, organizado por Celso Corrêa Pinto de Castro e publicado pela FGV, traz a confissão do general de que aquele tweet pressionando o STF sobre a prisão de Lula havia sido combinado e aprovado pelo Alto Comando do Exército.

Estamos em 2024, e ainda pouco se discute aberta e publicamente com a sociedade civil o real papel que as Forças Armadas têm exercido na nossa democracia desde 1988. É fato que militares, recentemente, precisamente ao longo de 21 anos (entre 1964 e 1985) estiveram presentes na história política brasileira controlando territórios e participando ativamente da política. Veio, então, a redemocratização brasileira, mas o entendimento de parte do contingente das Três Armas sobre o exercício de uma espécie de tutela à política e às instituições políticas brasileiras parece continuar, tornando o presente uma continuidade do passado.

O sentimento geral é de que as Forças Armadas estão ali sempre à espreita e podem tomar o poder a qualquer momento, inclusive enquanto você estiver de férias numa praia num 8 de janeiro qualquer.

A única diferença relacionada à constante vontade intervencionista de parte das Forças Armadas na nossa democracia é que, agora, essas instituições são também 2.0. Temos “cibergenerais”, oficiais que lacram nas redes e até ameaças de militares e instituições via web. Moderníssimos! Possivelmente, o golpe será “twittervisionado”.

O uso das ferramentas online por militares é orquestrada e muito bem ensaiada. Ainda em 2015, quando o Exército estava sob o comando de Villas Bôas, o Centro de Comunicação Social do Exército deu início ao Projeto Reserva Pró-Ativa!, que, segundo o seu site oficial, teria “o objetivo de estabelecer um canal de contato direto entre o Comandante do Exército e os integrantes da reserva da Força Terrestre”. Para isso, de acordo com eles, reuniriam um grupo inicial de, nada mais nada menos, 1,5 mil militares da reserva, com a missão de “divulgar o Exército Brasileiro em seus círculos de amizades” — nas entrelinhas, nas redes sociais.

A própria revista Sociedade Militar exaltou que a “relevância da força terrestre na internet deve-se em muito à visão de mundo do General Eduardo Villas Bôas” e que ele teria empreendido “diversas ações no sentido de reforçar a imagem da força diante da sociedade”. Apesar de existir uma portaria do Exército de 2021 que dispõe que militares estão vedados de ter perfis em redes sociais que contenham a identificação de sua função militar e patente, isso não tem constrangido militares de estarem nas redes e até de participarem de milícias digitais.

Ainda em 2020, o Twitter havia dado o selo azul de autenticidade, o que chamamos de “Twitter verificado”, para 15 oficiais das Forças Armadas, dentre eles, Hamilton Mourão (com, hoje, 2,7 milhões de seguidores) e General Augusto Helen (2,2 milhões de seguidores), descrevendo em seu perfil que era “General de Exército”. A mesma coisa Villas Bôas, com 1, 2 milhões de seguidores.

A presença de militares nas redes tem sido crescente. E casos chocantes aconteceram reiteradamente com oápice em 8 de janeiro de 2023. Lembremos, por exemplo, o caso do Coronel do Exército Ricardo Sant’Anna, que foi indicado pelo então Comandante do Exército, General Paulo Sérgio Nogueira, para participar do grupo de militares que fiscalizariam as eleições e, ao mesmo tempo, em suas redes sociais, especialmente o Facebook, divulgava notícias falsas e teorias da conspiração infundadas sobre o sistema eleitoral.

O ex vice-presidente General Mourão, em 2022, também escreveu em alto e bom texto em comemoração ao Dia do Exército que este teria uma história de vitórias, uma delas seria a “Revolução Democrática de 1964”. O Exército Brasileiro, de acordo com o Blog do Exército, tem presença nas mídias digitais desde 27 de outubro de 2010. A Força está em Twitter, Facebook, Instagram, LinkedIn, YouTube e Telegram. De acordo com o mesmo blog, “não é possível negar que, diante de um cenário político-social polarizado, como o que vivenciamos no Brasil, o Exército Brasileiro, assim como diversas instituições públicas, enfrenta desafios significativos em relação à sua imagem nas mídias sociais”. “Assim, a presença nas mídias sociais visa à ampliação da divulgação das atividades da Instituição e a transmissão de informações para diversos públicos, aproximando o Exército de um grupo de usuários que passam a influenciar a opinião pública.” Lá também se menciona “o monitoramento do que o público fala em seus canais e perfis institucionais nas mídias sociais.”

Mas, como em quase tudo nas Forças Armadas brasileiras, há aí uma linha tênue entre o que é legal e o que é espúrio. O Exército, em 2021, em relatórios produzidos pela Divisão de Produção e Divulgação do Centro de Comunicação Social do Exército, monitorou as redes sociais para identificar detratores do Projeto de Lei (PL) 1.645/2019, que tratava da reestruturação das carreiras militares. Segundo dados revelados pelo Correio Braziliense, os documentos mostraram que foram traçadas estratégias de monitoramento e identificação de discursos nas mídias sociais de cidadãos comuns, parlamentares, jornalistas e blogueiros para, depois, tentar neutralizá-los e ganhar a narrativa. Importante ainda recordar que o General Braga Netto foi questionado, em audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, se o Exército fazia monitoramento políticos, em que respondeu: “Não existe monitoramento de parlamentares, não existe”.

Em 11 de novembro de 2022, o Comandante da Aeronáutica Garnier Santos, o Comandante do Exército, Freire Gomes e o Comandante da Aeronáutica, Baptista Júnior, publicaram nota em conjunta chamada “Às Instituições e ao Povo Brasileiro”, que veio logo após a decisão expedida pelo Ministro Alexandre de Moraes que determinava a imediata liberação das vias obstruídas por cerca de cem caminhoneiros em Brasília. No texto, afirmavam serem as Forças Armadas “moderadoras nos mais importantes momentos da história” e que brasileiros teriam direito “à livre manifestação do pensamento; à liberdade de reunião, pacificamente; e à liberdade de locomoção no território nacional”.

Relatório da Polícia Federal sobre a tentativa de golpe de 8 de janeiro revelou que militares golpistas se aliaram ao comentarista Paulo Figueiredo da Jovem Pan — por ironia (ou não) do destino, neto do ex-ditador General Figueiredo. O objetivo dessa colaboração foi, dentre outras coisas, espalhar informações falsas para manchar a reputação de generais contrários ao rompimento do Estado democrático. As fake news tinham como objetivo, inclusive, enlamear a figura de Tomás Miguel Ribeiro Paiva, comandante do Exército nomeado por Lula. Ainda, Moraes, a partir de informações obtidas na Operação Tempus Veritatis, deflagrada em fevereiro de 2024 para investigar a organização criminosa que teria atuado na tentativa de golpe à democracia brasileira no 8 de janeiro, concluiu que militares tinham um plano de ação para fazer um golpe de Estado, incluindo como tática a disseminação de notícias falsas com o objetivo de “incitar os integrantes do meio militar a se voltarem contra os comandantes que se [posicionassem] contra o intento criminoso”. 

O Radar aos Fatos identificou 39 compartilhamentos de correntes difamatórias só entre 29 de novembro e 3 de dezembro de 2022. As mensagens acusavam os oficiais não golpistas de serem “melancias” (uma expressão pejorativa usada para se referir a militares supostamente “comunistas”, dado que seriam verdes por fora e vermelhos por dentro) e ainda diziam que estes teriam ligações com Moraes e Lula. Essas postagens continham foto e nome completo dos generais. Alguns dos citados foram o Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, à época comandante militar do Sudeste; Richard Fernandez Nunes, comandante militar do Nordeste; e Valério Stumpf Trindade, chefe do Estado-Maior do Exército.

E o nosso “twiteiro” Villas Bôas, o que fez? Na rede social, condenou as fake news que difamavam os generais do Alto Comando, mas, no fim do texto, novamente ameaça e diz: “Nossa força, em algum momento, pode ser instada a agir. Vamos, portanto, assegurar a tranquilidade necessária para a tomada de decisões por parte de nossos chefes”.

Importante ainda salientar que a presença massiva de militares no governo Bolsonaro — de ministérios a cargos que, antes, seriam ocupados por civis — deixou muito transparente o modus operandi da atuação de parte das Forças Armadas. Inclusive, em junho de 2021, um decreto de Bolsonaro alterou um decreto de 2017 e liberou que até militares da ativa ocupassem cargos por tempo indeterminado. Nisso, 92 cargos de chefia nas empresas públicas ou de capital misto estavam sob comando de membros das Forças Armadas no governo Bolsonaro e 3.104 militares ocupando funções no Executivo Federal (primeiro e segundo escalões), até mesmo acumulando remunerações.

No Portal da Transparência, do governo federal, era possível identificar o pagamento de supersalários ao grupo das Forças Armadas no governo Bolsonaro. Por exemplo, o Ministro de Minas e Energia, o Almirante Bento Albuquerque, recebeu, em 2020, em dois meses de remuneração, segundo a CNN, total bruto de mais de R$ 1 milhão. O ex-ministro da Defesa e ex-candidato à vice-presidência na chapa de Bolsonaro, General Walter Braga Netto, chegou a recebeu em um total de R$ 925.950,40, também segundo a CNN. Sublinhemos que este último general está sendo acusado de ter direcionado R$ 100 mil para um grupo de membros das Forças Especiais do Exército, os “kids pretos”, que participariam das ações durante os eventos de 8 de janeiro. Esse grupo de elite teria, dentre outras funções, organizar a disseminação de fake news, bem como se aventa que, talvez, teriam a incumbência de prender Alexandre de Moraes quando o golpe fosse instaurado.

No entanto, há lados positivos. Se as mídias sociais foram usadas por membros das Forças Armadas para ameaçar golpes e até para espalhar desinformação em uma guerra digital, também foram (e têm sido) usadas por membros da sociedade civil e da imprensa para informar a sociedade sobre o que há dentro da caixa opaca chamada Forças Armadas Brasileiras. De acordo com dados do Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (INCT) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em sua pesquisa A Cara da Democracia, aqueles que “confiam muito” nas Forças Armadas passaram de 33,9%, em 2018, para 24,9%, em 2022, uma queda de quase 10%. Já aqueles que “não confiam” ou “confiam pouco” somam 42%.

Ainda não sabemos ao certo o porquê dessa queda de confiança. Pode ser por decepção de indivíduos de extrema direita que esperavam que as Forças Armadas tivessem participado com mais pujança do 8 de janeiro, de acordo com a Sociedade Militar. Pode ser que outros tenham caído em si após os episódios desastrosos, como foi a gestão Pazuello no Ministério da Saúde na pandemia de covid-19.

Fato é que as Forças Armadas estão atuando atrás de uma vidraça como nunca estiveram antes: cada tweet, cada post no Facebook e cada informação obtida e divulgada nas mídias sociais fazem o Brasil entender mais quem são nossa ativa e nossa reserva. Dessa forma, as instituições que exercem accountability podem atuar de forma mais assertiva no controle dos funcionários públicos que compõem as Três Armas do País.

Ditadura nunca mais!

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